segunda-feira, janeiro 25, 2010

Traço de uma só cor

Nunca poderia gostar de alguém a quem não respeitasse e admirasse.
Aprendi a não me limitar a ler as etiquetas e o pseudo prestígio que elas arrastam. A maior parte destes adornos tem um único destino: o caixote do lixo.
O invólucro já dificilmente me seduz; as palavras nada provam porque raramente implicam carácter, atitude; só as acções distinguem a ética da farsa. Tudo o mais é lacuna ou omissão. Egocentrismo, presunção, vaidade.
Não, nunca poderia gostar de alguém que é traço de várias cores.

AMS

sexta-feira, janeiro 15, 2010

Vislumbre

Observo-te frequentemente quando não me pressentes.
O meu olhar veste-se de ti e acende-se, por instantes,
de emoção. És o abismo que me atrai. Vertigem rasgando
os limites. Imagem devorada pela pressa de te respirar.

Subitamente, volto a pendurar-me na realidade, no recuo,
na distância. E tu voltas a ser eco. Sopro.
Vislumbre de um mundo negado.


AMS

sexta-feira, janeiro 01, 2010

Reticências

Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção.
Quero fazer isto agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de fazer qualquer coisa!
Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem — um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei.
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa o sorrir...
Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.
Assim se faz a literatura...
Santos Deuses, assim até se faz a vida!
Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres,
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos,
Os outros também são eu.
Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...
Olho dos papéis que estou pensando em arrumar para a janela,
Por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, inclui uma crítica metafísica.
Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema...
Como um deus, não arrumei nem uma coisa nem outra...

Álvaro de Campos