terça-feira, maio 30, 2006

Prestidigitações

A desumanidade é o mundo difuso de alguns. Mundo onde se julgam deuses… sendo escravos.
A sua fria indiferença não é senão a grandeza fátua do incerto, da lonjura a que queriam alçar-se. Abdicando da parte mais frágil - e mais doce - da sua existência. Mistificando a ilusão da sua superioridade com bolinhas de sabão, débeis artimanhas de quem se furta ao que deve.
Tão inábeis para amar. Tão transviados da luz. Tão ocultos do que não souberam ser.
Coitados.

AMS

domingo, maio 28, 2006

"Não ter pressa é saber que chegaremos"

Em frente ao mar, encontrava sempre a serenidade do equilíbrio. Era como se ele a abraçasse por dentro, comungando uma singular capacidade de redenção intemporal.
Lugares-comuns não enchem a vida de ninguém. Mas as pessoas andam afogueadas, perturbadas, alheadas, entardecidas. Subavaliam a importância que os outros têm na sua vida. Sobreavaliam uma forma quase irracional - distraída - de se entregarem. De gostarem. Vivem de olhos fechados, reprimindo - ou ignorando - que até a dor é simples. Dói quando dói muito.
Mas o mar tinha o sublime poder de a levar a fazer “delete” à desconstrução da sua existência. Ali, sorvendo e decifrando a sua respiração, silenciosa e deslumbrada, a sensação que a invadia era de pureza inicial. O sussurro das ondas envolvia-a e, de certa forma, parecia dizer-lhe – Deixa de te preocupar com o tempo. De o interrogar. Que importa a resposta? Esquece. Recomeça. Há gestos por refazer. Nada é definitivo.
Nada é definitivo… - pensou. E quase lhe apeteceu gritar – Fica prometido. Vou procurar o meu lugar exacto. Uma vida não se cria de uma só história. Nem de uma só vez.

AMS

sábado, maio 27, 2006

não te posso contar o que mais sinto

Tacteando as palavras, aporto ao cais
da tua escuridão. Tento recordar-te aquele tempo
em que, fecundados de sonhos insubmissos, nada
se perdia. Tudo era eterno.
Os nossos olhos, deslumbrados pela luz
da aurora triunfante, eram também luz.
Os nossos gestos, sob um céu glorioso,
saqueavam, palpitantes, o divino licor
que nos tornava imortais.
E éramos felizes.

Como se nada houvera sido,
a tua noite impede-me de ver
esse tempo, ébrio de astros, desnudo
de impossíveis, condenado, agora,
ao esquecimento que reflui do pântano dos dias.
Que estranha e breve é a felicidade!

AMS

quinta-feira, maio 25, 2006

Um poema

Queria escrever o mais belo poema de amor.
Um poema que não falasse do eu, do tu,
mas dos laços que ligam o eu e o tu.
Um poema que traçasse a percepção
de que só o amor cabe no ocaso sem limites,
um amor imenso, infinito, soberano,
um amor que, na sua vertigem, alastrasse
para além do real, devorado pela pressa de crescer
mais, sempre mais, dentro de nós.
Um amor feito de desejo violento e de densas
clareiras de ternura.
Um amor que não morresse a cada instante
nas margens da rotina, dos preconceitos,
da estreiteza de palavras opacas
pintadas em paredes de cenário.
Um amor sem dedos apontados, culpas,
sorrisos tristes e magoados.
Não sei se tal amor existe ou se é utopia,
fantasia sedenta de encontrar o porquê
de ser-se no outro para além do possível,
para além do indecifrável, para além da sensação
de que o amor é muito mais que tudo isto.
Queria escrever o mais belo poema de amor.
O maior despojamento. A loucura mais completa.
Mas não sei. Não sou capaz. E o poema empalidece.
Que estranha ironia esta de escrever o que
sinto, obstinadamente abraçada à ideia
de que finjo o que escrevo?!

AMS

quarta-feira, maio 24, 2006

O vaso de buganvílias


Cada manhã desperta da penumbra da noite.
Em cada manhã, a vida. Contudo, ninguém diz,
porque ninguém se apercebe - estamos vivos!
O sol espreguiça, de novo, os seus raios,
mas tudo carece de sentido para o homem
inteligente, cheio de equívocos e pueris
preocupações. Os olhos estão cegos à beleza
esplendorosa da rosa que se abre, ao esvoaçar
gracioso dos pássaros, à frescura de um vaso
de buganvílias que enfeita o descorado
de uma varanda rendilhada a memórias já
esquecidas, emoções de chegadas e tristezas
de partidas. E o homem, ser pragmático, mede
milímetro a milímetro o tempo, contorcendo-o
em paragens sempre adiadas, afogado em tédio
e bocejos perdidos em labirintos de nada.
A vida, essa, continua à espera que a sofisticada
inteligência humana perceba que ela pulsa, sorrindo,
num vaso de buganvílias de uma velha varanda.

AMS

terça-feira, maio 23, 2006

A Morte

Por mais que tentasse, não conseguia dormir. O silêncio pesava e os ruídos mais ténues transfiguravam-se, agigantavam-se de uma forma tão precisa, que não havia no seu cérebro espaço livre para uma fuga.
Queria libertar-se daquele quarto, daquele edifício, daquelas noites imensas que, a qualquer momento, dariam, triunfalmente, xeque-mate à vida. Queria apagar aquela terrível sensação a percutir-lhe no cérebro - a morte passeava-se nos corredores, nos gemidos a que não conseguia atribuir um nome, no sussurro de vozes que tentava decifrar e que delineavam uma fronteira irreversível, um mundo paralelo. Preenchido de sombras, incógnitas e, paradoxalmente, de certezas.
Talvez o medo da noite, atendendo às circunstância, se justificasse. Mas não conseguia evitar aquele bailado negro de ideias, a absurda vontade de pedir que a resgatassem daquele pesadelo. O silêncio, ali, só podia ser portador de más notícias e de um tempo e espaço irrespondíveis.
Tentava a todo o custo alhear-se do que pressentia estar a passar-se no quarto ao lado. Mas como assumir uma atitude displicente perante a morte? Como ficar indiferente à sua presença? Sabia-se perto dela, imaginando-lhe o rosto de mármore e cera. Entendia, pela primeira vez, a gratuidade e a pequenez do existir. Não sabia o que a assustava mais: se a evidência da morte ou a do silêncio que a anunciava.
Manteve-se imóvel, atenta. Os gemidos eram entrecortados por uma respiração arfante, quase a desistir, mas ainda lutando - pareceu-lhe. Sentiu, de repente, as vozes esfumarem-se. Passos apressados. Os gemidos aquietarem-se. O silêncio definitivo. Era já alguém a entrar no mundo dos ausentes - percebeu, atingida pelo pavor do irremediável.
Rígida, concentrada naquele tempo sem tempo, pensou – Vai-te embora. Deixa-nos viver. Eu quero viver.
O chiar gélido - escarninho - das rodas de uma maca que saía do outro quarto foi a única resposta que obteve.


AMS

domingo, maio 21, 2006

Livro Três

Na verdadeira noite escura da alma, são sempre três e meia da
manhã, dia após dia.


F. Scott Fitzgerald
A Fenda Aberta

Livro Dois

Somos muitas vezes criminosos aos olhos da terra, não só por
termos cometido crimes, mas porque sabemos que crimes foram cometidos.

Alexandre Dumas
O Homem da Máscara de Ferro

Livro Um

"Fiz aquilo", diz a minha memória.
"Não seria capaz de fazer aquilo", diz o meu orgulho,
e permanece irredutível. Por fim, a memória cede.

Friedrich Nietzsche
Para Além do Bem e do Mal

sexta-feira, maio 19, 2006

Cobras

Era uma vez uma cobra que começou a perseguir um pirilampo que só vivia para brilhar.
Ele fugia rápido com medo da feroz predadora e a cobra nem pensava em desistir. Fugiu um dia e ela não desistia, dois dias e nada.
No terceiro dia, já sem forças, o pirilampo parou e disse à cobra:

- Posso fazer três perguntas?
- Podes. Não costumo abrir esse precedente para ninguém, mas já que te vou comer, podes perguntar.
- Pertenço à tua cadeia alimentar?
- Não.
- Fiz-te alguma coisa?
- Não.
- Então por que motivo me queres comer?
- PORQUE NÃO SUPORTO VER-TE BRILHAR!!!


E é assim,

Diariamente, tropeçamos em cobras!

Quantas conheces?

(recebido por e-mail)

quinta-feira, maio 18, 2006

Não morre quem tiver por lema/fazer de cada homem seu irmão. - António Arnaut

Que importa que bocas famintas,
mãos regeladas, seios mirrados,
gemidos que se arrastam
num estertor de prece inútil,
(pontuando de dor este poema)
caiam, pulverizados, como leve reminiscência
na memória colectiva, face a uma Humanidade
entorpecida, vestindo a razão da força?!

É claro que nada disto tira o apetite
aos que não sentem a tragédia dos que tombam
ceifados por armas inteligentes,
controladas por homens igualmente inteligentes
que, hábeis missionários, pregam que a guerra
estreita as relações entre os povos - vivos ou mortos.

Mas o véu da morte,
as vidas lançadas para a beira-dor,
os esquifes contendo sangue inocente,
nada disto impede
que atrás de uma voz que cai,
outra se levante e alastre
(como a semente no ventre da terra)
em toda a longitude da palavra esperança.

AMS

quarta-feira, maio 17, 2006

Entre el alba y la noche hay un abismo - Jorge Luis Borges

Olha para o relógio. Fugazes horas perdidas no espaço.
Durante lassos momentos, fica especada, no passeio, sem saber o que fazer, debatendo-se com desejos e sentimentos contraditórios. Querendo continuar. Querendo parar. Não sabendo o que querer.
De que adianta disfarçar a mentira com outra mentira? – interroga-se. Aquele mal-estar indefinível, aquela raiva que parecia vir dos confins dela mesma, aquele esmiuçar até à exaustão o que não entendia… tudo deixara de ter sentido.
Perscruta o interior do edifício até lhe doerem os olhos. Cada pessoa que entra ou sai parece-lhe familiar. Julga reconhecer feições. Imagina identificar gestos que a permitam situar-se. Nada. Não há direcção possível.
Tenta distrair-se. Não é capaz de se lembrar de algo suficientemente estúpido ou banal. Um estímulo qualquer que abrisse o leque de razões que a levasse à lógica final. Tenta ter pena de si mesma. Já nem isso resulta. Grãos de poeira caem com subtil resignação e, em breve, tudo ficará coberto de um cinzento sufocante. E a solidão, essa sensação de não fazer parte de nada, submergi-la-á até ao ponto de não conseguir encontrar-se.
Começa a caminhar, afastando-se do que a arrastara até ali. Encostada à parede, percebe que procura, desesperadamente, aquilo que a perderá. O inimigo abstracto, aquele que tem, exaustivamente, soterrado a sua esperança na vida, nas pessoas, é… ela, afinal. É ela que tem gerado a morte dos seus próprios sonhos. Contudo, ainda não era demasiado tarde. De longe, viriam novos ventos. Uma verdade que lhe eternizasse a grandeza de ser.
Sente-se estranhamente aliviada. Livre. Como se, ao passar por um contentor de lixo, atirasse lá para dentro, um a um, os resumos - sempre incompletos - da sua vida.


Pelo rosto passa-lhe um vinco de determinação. E, empurradas pela expectativa de mudança, começaram a soltar-se as lágrimas que, há muito, tinha aprisionadas dentro de si.

AMS

terça-feira, maio 16, 2006

Indecifrável


Não meças a minha alma
Pelo que não mostro
Nem digo.

Tenho o coração gasto
- E amargo também -
De tanto se refugiar na própria sombra,
De ser choro baixinho
Navegando, sem tino,
Contra a maré.

Perdeu-se, perdi-me
No logro, indiferente, dos que passaram,
- Mas não ficaram -
Mascarados de luminosa perfeição
Com que se ilude um coração.

Esta alma, que é a minha,
- Ora terna, ora agressiva,
Selvagem, orgulhosa,
Humilde, receosa -
É como uma mão fechada
Que se abre, sem se ver,
Àqueles que a queiram ler.

Não meças a minha alma
Pelo que pensas saber,
Mas não sabes entender.


AMS

domingo, maio 14, 2006

Pessoal e Impessoal

Abriu a janela. Não tinha sono. No pino do cansaço era bom ver, noite acesa, as estrelas a fazerem-lhe companhia. Recusava, àquela hora, perante aquela quietude, inquéritos à consciência. Saboreava o prazer da solidão absoluta. Tudo se quer com vagar…
Enquanto dava descanso ao espírito, deixando-o à solta num tempo só dele, corrigia-se das emoções negativas. Aquele quase estado de graça retirara-lhe o nó maiúsculo atravessado, há já uns dias, na garganta . Seria o impossível possível?! Até que ponto o azedume ou a loucura levariam alguém a disfarçar-se daquela maneira, criando "rostos" cujas identidades - ainda que com uma ou outra falha - pareciam credíveis?! Até que ponto a alienação poderia viajar com a crendice de que os outros - sempre a indiferença perante os outros - seriam tão vazios de inteligência que lhes era negada a rústica possibilidade de somar dois mais dois?! Dois mais dois. Dois mais dois igual a uma mente diabolicamente distorcida. Diabolicamente mascarada de uma, duas… não se sabe quantas personagens… Quantas camadas sobrepostas! No extenso areal de lugares-comuns, aquela mente era, tinha de ser honesta, um original estranhamente cumeado de mistério. Perigosa, todavia. Uma espécie de abalo sísmico que não se sente, mas fragiliza alicerces.
Como ser-se humano e pertencer àquela condição? Porquê? Porquê? Eis a pergunta que a atordoava há algum tempo… A vida não poderia ser apenas uma arena, onde se testavam gloriazinhas efémeras, sempre a exigir dividendos.
Há sempre espaço na casa de cada emoção. Até para colocar lixo. Lixo sem nexo. Sentia-lhe o odor à distância. E, no entanto, quase lhe agradava aquele faz-de-conta. Sufocante. Demasiado presente nas coisas, nas pessoas, nas palavras, no próprio silêncio com que os gestos actuavam. Mas aliciante. Como um combate sem vencedor nem vencido. Apenas, às vezes, uma vontade enorme de vomitar e fugir.

Porquê? Buscar o quê? Que espécie de realização? Que júbilo? Um jogo de prestidigitações e humilhações? Talvez a resposta tivesse a ver com o ser e o não-ser que nos habita a todos.
O límpido céu da noite. As estrelas por companhia. A preguiça que lhe escorria do corpo. O embalo agradável que afugentava ideias enfarinhadas de sombra. Ela, à janela, subindo, subindo, até virar estrela no seu íntimo céu. O resto? O resto tanto dava!


AMS

sábado, maio 13, 2006

demência

crê o homem
que nada é superior ao próprio homem

míseros aqueles
ébrios de vaidade
erguendo um brinde
ao nada


AMS

sexta-feira, maio 12, 2006

tempus fugit

Tecemos a vida entre o medo e a promessa - uma forma perversa de esperança.
Mas o ciclo eterno da nossa brevidade aguarda, calmo, o momento de parar.

AMS

quinta-feira, maio 11, 2006

De muitas formas se escreve o teu sorriso

O teu sorriso. Sempre o teu sorriso à altura do meu olhar.
Com ele tudo é luminoso, próximo, fluente. Como se a luz
se bastasse à sombra. Tão seguramente real. Tão eterno no
momento acontecido e no que está por acontecer. Tão imenso,
tão cheio de ribeiros mansos. Tão azul de tanto ser verde. Tão teu.

Mergulho manhã dentro no teu sorriso e aspiro a vida a acontecer.

AMS

quarta-feira, maio 10, 2006

reverso

Afirmas distinguir matematicamente
- num cálculo mesquinho e nevoento,
arrebatando certezas do não certo -
as aragens que a minha alma conheceu,
os contornos e as cores do que sou eu.

Esquinas-te na suspeita lucidez do
tudo e do contrário. Mas esqueces
que subo a mesma escada que tu desces.
Eu rumo aonde o sonho me consente.
A ti é o gesto agreste que te prende.


AMS

segunda-feira, maio 08, 2006

Vestígio

Caminho cedo e tarde ao mesmo tempo.
Por isso escrevo até à exaustão
A incerteza da minha existência.

AMS

domingo, maio 07, 2006

Promessa

Mãe,
Nota de ternura na secura estridente dos dias,
Para ti voarei com as aves
Se um dia me renascerem as asas.

AMS

segunda-feira, maio 01, 2006

Maio-Amor

M urmúrio quente esvoaçando na vereda do coração
A muralhado de sonhos em cada olhar ficado, apartado.
I nconfessada doçura raiando, em cada ramo, cada haste,
O nome silencioso, mas presente, da mais sentida bênção. O amor.

AMS