domingo, maio 14, 2006

Pessoal e Impessoal

Abriu a janela. Não tinha sono. No pino do cansaço era bom ver, noite acesa, as estrelas a fazerem-lhe companhia. Recusava, àquela hora, perante aquela quietude, inquéritos à consciência. Saboreava o prazer da solidão absoluta. Tudo se quer com vagar…
Enquanto dava descanso ao espírito, deixando-o à solta num tempo só dele, corrigia-se das emoções negativas. Aquele quase estado de graça retirara-lhe o nó maiúsculo atravessado, há já uns dias, na garganta . Seria o impossível possível?! Até que ponto o azedume ou a loucura levariam alguém a disfarçar-se daquela maneira, criando "rostos" cujas identidades - ainda que com uma ou outra falha - pareciam credíveis?! Até que ponto a alienação poderia viajar com a crendice de que os outros - sempre a indiferença perante os outros - seriam tão vazios de inteligência que lhes era negada a rústica possibilidade de somar dois mais dois?! Dois mais dois. Dois mais dois igual a uma mente diabolicamente distorcida. Diabolicamente mascarada de uma, duas… não se sabe quantas personagens… Quantas camadas sobrepostas! No extenso areal de lugares-comuns, aquela mente era, tinha de ser honesta, um original estranhamente cumeado de mistério. Perigosa, todavia. Uma espécie de abalo sísmico que não se sente, mas fragiliza alicerces.
Como ser-se humano e pertencer àquela condição? Porquê? Porquê? Eis a pergunta que a atordoava há algum tempo… A vida não poderia ser apenas uma arena, onde se testavam gloriazinhas efémeras, sempre a exigir dividendos.
Há sempre espaço na casa de cada emoção. Até para colocar lixo. Lixo sem nexo. Sentia-lhe o odor à distância. E, no entanto, quase lhe agradava aquele faz-de-conta. Sufocante. Demasiado presente nas coisas, nas pessoas, nas palavras, no próprio silêncio com que os gestos actuavam. Mas aliciante. Como um combate sem vencedor nem vencido. Apenas, às vezes, uma vontade enorme de vomitar e fugir.

Porquê? Buscar o quê? Que espécie de realização? Que júbilo? Um jogo de prestidigitações e humilhações? Talvez a resposta tivesse a ver com o ser e o não-ser que nos habita a todos.
O límpido céu da noite. As estrelas por companhia. A preguiça que lhe escorria do corpo. O embalo agradável que afugentava ideias enfarinhadas de sombra. Ela, à janela, subindo, subindo, até virar estrela no seu íntimo céu. O resto? O resto tanto dava!


AMS