segunda-feira, abril 30, 2007

E não dizemos nada

Na primeira noite, eles aproximam-se
e colhem uma flor do nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem,
pisam as flores, matam o nosso cão.
E não dizemos nada.

Até que, um dia, o mais frágil deles entra
sozinho na nossa casa, rouba-nos a lua,
e, conhecendo o nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,
já não podemos dizer nada.

Maiakovski

domingo, abril 29, 2007

Tudo tão perto da infinita ignorância

Ficou imóvel e perplexa. Retinha, ainda, uma impressão de incredulidade e desconforto.
Os últimos acontecimentos ligados a certos movimentos nacionalistas eram, por si só, motivo para que qualquer notícia associada à extrema-direita captasse a sua atenção. Contrariamente à opinião do Ministro da Administração Interna, acreditava que essas manifestações - ainda que em pequeníssima escala - requeriam atenção e a devida cautela. As simpatias que estes grupos começavam a gerar nos mais novos faziam sempre recear um saudosismo mórbido e equívocos alienados. Hoje como ontem, era preciso incutir nos jovens - cheios de dúvidas - uma visão nítida e esclarecida da vida. Bastava de olhos embasbacados que não viam o que realmente urgia ver.
Assim - e retomando o fio condutor do pensamento - quando ouvira falar numa manifestação, em Santa Comba Dão, a fim de homenagear o nascimento de Oliveira Salazar, colou, de imediato, os olhos no écran da televisão.
Apesar de todo o desencanto, apesar daquela sensação amarga de que algo, em cada dia, morria dentro das pessoas, ainda tinha como lema certos valores e princípios incutidos pelo pai. A opressão, o obscurantismo, a cegueira e violência, onde quer que se alojem, devem ser sempre combatidos. Num estado democrático, cada um é livre de manifestar as suas ideologias. A diferença deve ser respeitada. Seria assim. Deveria ser assim. Mas a verdade é que aquele tipo de iniciativas não dava lugar ao mínimo de confiança. Não quer isto dizer que fosse apologista de uma hipocrisia platónica do politicamente correcto. Muito pelo contrário. Contudo, ao observar aquelas pessoas, não podia deixar de questionar-se - a liberdade também pode ser isto?!
Compreendia as palavras dos mais velhos. Decepcionados, sem ninguém que os entendesse e apoiasse viravam-se para o passado. Era ainda nele que viviam. Que levaria, porém, os mais novos a procurar uma resposta no caos, na repressão e nas verdades bifurcadas?! Que levaria alguns a delinear a vida em função de ícones plasticinados?!
O boné preto, uma postura rígida, quase militar, um tom declamado e apelativo, enfim, tudo conduzira a uma não associação do dirigente que discursava ao amigo e colega de há muito. De repente, identificou-o. A memória, às vezes, é ateada pelo inesperado. O olhar e a surpresa detiveram-se numa "rosto" que não conhecia, conhecendo bem.
Na verdade, mais do que a incrível descoberta, perturbava-a a ideia de que, efectivamente, somos possuidores de uma arrogância imperdoável ao pensarmos que conhecemos toda a luz e toda a sombra do outro.
O ser humano é, realmente, muito leve. Muito leve e, simultaneamente, demasiado compacto.

AMS

quarta-feira, abril 25, 2007

Dos Queen ao Malhão

A propósito da entrada triunfante do "Eng.º" Sócrates, hoje, em São Bento, ao som da música dos Queen - We are the champions - só me vem à memória esta citação:

" He wanted to make his country great. But he wasn´t himself a great man."!

Alguns homens não passam de uma ficção deles próprios.

LIBERDADE

Gravaram-te no silêncio inquieto da raiva dos oprimidos.
Desenharam-te sobre a loucura da mordaça e dos sonhos traídos.
Escreveram-te sob a face resignada de uma noite sem fim,
Cárcere da vida, do pão e da seiva dos poetas.

Mas a noite cedeu, tu renasceste e a angústia partiu.
Exilaste o medo, as correntes, as fronteiras furtivas.
Arrasaste muros, resgataste a esperança, respiraste de novo a luz.
Só tu, LIBERDADE, acendes em nós a vontade de criar raízes.

AMS

domingo, abril 22, 2007

Histórias

A vida é um silencioso cenário expectante.
É fácil criar uma história. O difícil é esquecê-la ainda que, em menos de nada, ela acabe.
Fechar a porta e atirar fora a chave? Não é assim tão linear. Como um lento efeito dopante, acabamos sempre por deixar a chave debaixo do tapete para quando a história quiser voltar.
Até que a espera se torna expiação.


AMS

sábado, abril 21, 2007

entre parêntesis

Renuncio

não é conformismo

nem sequer debilidade

muito menos uma derrota

É a prova mais difícil de amor

AMS

sexta-feira, abril 20, 2007

Dito isto...

Tenho uma profissão esvaziada, quase falida. Não me pedem que ensine, obrigam-me a acumular cargos.
Estaremos todos a ficar loucos?! É que a realidade começa a ultrapassar a ficção.
Na verdade, o que é, presentemente, um professor? Pontos. Em rigor, noventa e cinco pontos.
Resta saber se, deste modo, os alunos deixarão de esbracejar no cais da ignorância. Aliás, um pormenor de ínfima importância. Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, o que conta mesmo é o diploma. Qualquer um.
Mesmo feridos de morte, é importante não perdermos o sentido de humor. Ampara a alma e legitima a vida... ainda que a título póstumo!

AMS

sábado, abril 14, 2007

" Em qualquer aventura, / O que importa é partir..."

E partimos. Rumo a S. Martinho de Anta. Rumo à casa do grande escritor Miguel Torga.
No largo da vila, aguardava-nos o presidente da Junta de Freguesia, Sr. Mário Gonçalves, amigo leal do poeta. Foi ele, sorriso escancarado, coração perto dos olhos, quem nos falou de Miguel Torga. Dedilhando lembranças, contou-nos a história de Negrilho, o ulmeiro, ex-libris da terra, reduzido, presentemente, a um tronco seco e estéril. A árvore morreu no ano da morte do doutor - explicou-nos, emocionado. E sempre com voz embargada pela saudade e bem querer, falou-nos das pessoas e coisas que tiveram papel preponderante na vida do poeta. Assim, "perdemo-nos" por entre as azáleas, o noveleiro, a escola do Sr. Botelho, o padre Avelino, a Senhora da Azinheira - gabinete de trabalho do poeta, já que era neste local que o escritor se inspirava para escrever - e tantas outras recordações cheias de matizes e aromas.
O coração e a memória do Sr. Mário não se gastavam. Não se gastarão nunca.
Levou-nos a visitar as duas casas do amigo: o local onde viveu e a campa onde jaz. Na singeleza austera da campa rasa, sob um cipreste solitário, alguém recitou um poema. O rosto do nosso cicerone acolhia com ternura a tonalidade de todas as palavras do poema. Era como uma peregrinação interior renovada de nostalgias e saudade.
- Sabem como se chamam estas flores que orlam a campa? São torgas. Daí o pseudónimo Miguel Torga. O seu nome verdadeiro era Adolfo Rocha. Pertencia a uma família muito humilde. Quando foi estudar para Lamego, a mãe acompanhou-o com o colchão à cabeça, o pai transportava a cama e ele, como era muito pequeno, ia sentado num burro. Sim, que as viagens, naquele tempo, eram feitas a pé – esclareceu.
Valeu-lhe um tio que lhe pagou os estudos. Porém, antes de tirar medicina, foi moço de recados no Porto – concluiu.
Alunos e professores ouviam-no atentamente. O Sr. Mário conversava com as palavras com uma clarividência que comovia.
- Querem vir comigo até à Junta para lhes mostrar algum do espólio de Miguel Torga? – anunciou mais do que perguntou.
Estávamos perante um homem bom, genuíno, profundo, autêntico. Daqueles que não precisam de canudos pois possuem sensibilidade rara, arte narrativa e uma cultura luminosa.
Acompanhámo-lo e entrámos no edifício da Junta. Nesta altura, já todos estavam rendidos à simpatia e simplicidade do nosso guia.
- Todo este mobiliário foi-nos oferecido por ele - elucidou. Um dia, chamou-me a casa dele e disse-me para carregar estes móveis para aqui.
- Senhor doutor, vou guardá-los - disse-lhe eu.
- Se vo-los ofereci para trabalhar, são para trabalhar – respondeu o escritor.
E a narrativa continuava… Alunos e professores - uns sentados nas cadeiras, grande parte no chão - acolhiam com ternura as emoções que lhes chegavam.
- Sr. Mário, perguntou alguém, dá-nos o prazer de lanchar connosco?
- Esperem um pouco e já vos acompanho – proferiu. Tenho de fazer um telefonema…
E lá partimos, guiados, mais uma vez, pelo nosso novo amigo.
Estupefactos, vimo-lo tocar à campainha de um largo portão verde enquanto nos explicava :
- Esta é a minha casa. Se não virem inconveniente, poderão lanchar todos aqui. Já avisei a minha mulher…
E tinha, realmente, avisado, já que, de imediato, uma senhora abriu os portões, convidando-nos a entrar.
- Que nobre gesto! – pensei. Pessoas assim, “tudo amam, admiram e compreendem. São como um sol fecundo”.
- Os senhores professores querem vir ver a minha cozinha? É rústica, mas muitas vezes Miguel Torga ali jantou e ceou.
Entreolhámo-nos - não eram precisas palavras – e seguimo-lo.
A cozinha, espaço largo e acolhedor, pareceu-me familiar.
- Cheira-me a fumeiro - não pude evitar de comentar.
O casal e os meus colegas riram-se. A mulher do Sr. Mário explicou :
- Desde Janeiro, que não há aqui fumeiro. Tem bom olfacto, senhora professora.
Novas gargalhadas ecoaram quando o nosso amável hospedeiro anunciou
jovialmente:
- Não hão-de ir embora sem beber um copito.
Bebemos mesmo. Aquela ingénua confiança não permitia a secura de um não.
Há momentos - como aquele - em que não se pode deixar de gostar das pessoas.
Guardarei, eternamente grata, aquela limpidez de alma que permite acreditar na “grandeza do homem, criatura que cresce enquanto ama".

AMS

segunda-feira, abril 09, 2007

O rei vai nu

Não há mesmo pachorra para aturar este governo. As suas boas intenções. As suas estratégias rumo ao sucesso. Por mais que tentemos, é duro e difícil descortinar, por entre tanta névoa, um raiozinho de sol. Que o nosso primeiro é arrogante, prepotente e com uma tendência subterrânea para a ditadurazinha, isso já muitos pressentiam. Que o dito senhor é um fervoroso adepto da expressão "olha para o que digo; não para o que faço" também deixou de ser novidade. Basta reparar nas suas modestas feriazitas ao Quénia e ao Brasil para que, de imediato, nos sintamos na obrigação de apertar (ainda) mais o cinto. O país, afinal, depende (só) de nós, os escolhidos, os filhos dilectos, os eleitos para, quais mártires, entrarem na arena e, pacificamente, deixarem-se trucidar por leões famintos, vorazes, insaciáveis. Quando o espectáculo acabar, haverá sempre quem tenha a lata de dizer - lavo daí as minhas mãos!
Cada dia que passa, assistimos, estupefactos - indignados, decepcionados (?) - ao aumento da corrupção e , acima de tudo, da pouca vergonha. A demência política aliada ao rosto de uma irreversível imoralidade levam-nos a olhar de viés os dias que hão-de vir.
O caso da Universidade Independente é mais um (fatídico) sinal que nos força a acreditar na derrocada de um país, de um povo cada vez mais sem história.
«Não posso deixar de me indignar com mais uma campanha de insinuações, suspeitas e boatos que me pretende atingir na minha honra e consideração e que, à semelhança de outras de triste memória, assume uma dimensão difamatória e caluniosa», justificou Sócrates, atirando para a Universidade Independente a responsabilidade por «obrigações que não são dos alunos mas da própria Universidade». Também eu, Eng.º (?) Sócrates, não posso deixar de me indignar face ao seu autismo e falta de explicações. O seu despudor arrasta a incredibilidade. A mim, como a tantos portugueses, não basta que se tenha dado à canseira de modificar - vezes sem conta - o seu currículo. Era o que mais faltava que o não fizesse. A mim, como a tantos portugueses, incomoda esta falta de decoro e de transparência que, há muito, criou viçosas raízes em Portugal.
Sinceramente, senhor primeiro-ministro, não consigo perceber a sua relutância em mostrar o que se esconde - ou não - por trás do véu. Quem não deve, não teme, não é assim? Não é suficiente que se defenda com o monstro da cabala, da difamação e do boato. Seria mais terapêutico e eficaz , penso, que clarificasse as falhas relativas à sua licenciatura. Há sempre, e até prova em contrário, o benefício da dúvida. A minha, confesso, está mais virada para o indecoro da (in)certeza. Passo a explicar. Se estivesse no seu lugar, a minha imediata reacção seria a de, prontamente, mostrar que em nada me afectaria a investigação de quem quer que fosse. Possuo certificados e diplomas que confirmam a minha situação académica e seriam muitos - sim, que não tive sempre o mesmo docente às diferentes cadeiras - os professores e colegas que atestariam a minha presença e frequência quer às aulas quer a exames. Nem sequer me daria ao trabalho de pressionar alguém para comprovar o que, por si só, seria facilmente provado. E é aqui que está o busílis da questão, caro José Sócrates. Para quê, afinal, tanto telefonema e tanta pressão da sua parte no intuito óbvio de amordaçar os meios de comunicação e de, consequentemente, irradicar a menor suspeita sobre a sua pessoa?!? Quem não deve, não teme, repito. E não adianta aquela treta que os seus seguidores arranjaram para justificar as suas atitudes - o primeiro-ministro gosta de falar directamente com as pessoas. Bolas, se o senhor gosta de falar - dialogar - com as pessoas, então é bem provável que o estado caótico do ensino e do país seja, afinal, culpa absoluta dos professores.
Erroneamente, muitos afirmam não fazer diferença a sua licenciatura ou não licenciatura; o seu "esforçado" título de engenheiro ou o seu não título. Pois faz toda a diferença. Esse pequeno detalhe - e não estou a referir-me a canudos que, pelos vistos, se vendem, trocam e leiloam num piscar de olhos - permite discernir um homem vertical, de uma só palavra, de um homem oblíquo, de vários discursos dependendo da ocasião e dos protagonistas. Um primeiro ministro fiável de um primeiro-ministro que não cumpre as suas promessas, perito em vender banha da cobra.
Pobres portugueses - qual Sísifo carregado de ilusões - que ainda não perceberam o facilmente detectável - O REI VAI NU!

AMS

sexta-feira, abril 06, 2007

Planura

Nunca é tarde para vivermos os caprichos do acaso. Não te feches na concha aprisionada da tua memória. Caminha rente a um rio. Aproxima margens. Acentua a ternura. Suspende os silêncios. Grita livremente o teu nome. - disseste.

Foi isso o que mais me ficou de ti, sabes?

AMS

terça-feira, abril 03, 2007

Peregrinação

Adivinho no teu olhar,
ninho do meu silêncio,
a lenta peregrinação da ternura.

Verás tu no meu silêncio,
tempo suspenso de ti,
o inesperado trajecto do amor?

AMS

domingo, abril 01, 2007

Coincidências

Tenho dentista às seis. Vens comigo? Enquanto espero, podemos continuar o trabalho… - perguntara-lhe, hesitante, a amiga.
Visitas ao médico são, habitualmente, uma seca… Bom, se contarmos com uma hora de espera, ainda podemos acabar esta treta … Tudo bem. - arriscara. Afinal, tanto fazia esperar no café como no consultório. Além disso, a sua companhia serviria de válvula de escape à amiga. Dentistas? Um horror. Sentia-se sempre espiada até ao âmago quando era obrigada a visitar o seu. A cadeira provocava-lhe náuseas; intimidava-a a proximidade de uns olhos inquiridores sob a luz que a focava e não lhe permitia a mínima fuga; manietava-a a presença fria, metálica dos vários instrumentos perfurantes, levando-a a crer que não só os dentes estavam a ser minuciosamente observados, examinados. A alma também era vasculhada milímetro a milímetro. Sim, que a alma também dói. Pode ser uma dor súbita, cortante, desagradável - tal como acontece com a dor de dentes provocada, inesperadamente, pelo frio de uma bebida ou alimento - ou uma dor contínua, fina, insistente, capaz de nos arrastar ao desespero mais profundo. A única diferença que distingue a dor de dentes da dor de alma é que, para a primeira, há tratamento, analgésicos ou, e em situações limite, pode arrancar-se. A dor de alma, porém, não se cura com químicos, muito menos com panaceias. É como um abraço que vai, lentamente, esmagando. Dilacerando. Quando pensamos que é o fim, o abraço finge tornar-se mais lasso até que, de novo, começa a apertar. Num ciclo infernal. Interminável. Inumano.
Curioso o facto de os cientistas ainda não terem descoberto um lenitivo para este tipo de dor. Algo que esbata o sofrimento, os medos, o remorso, a inquietação, a lembrança, o silêncio. Um produto que desate os nós que nos unem, inexoravelmente, a ela. Que a afaste para longínquos espaços. Que a torne impessoal. Intransmissível. Irrenovável.
Dentistas? Um horror.

Na sala de espera - igual a tantas outras: a mesma empregada de sorriso automático, os mesmos sofás, a mesma mesa, os mesmos quadros, as mesmas revistas cheirando a mofo, até os mesmos pacientes passivos, resignados - renderam-se a uma espera longa. Sim, o trabalho ia ser profícuo.
De vez em quando, uma porta abria-se e alguém saía. Rostos esperançados requisitavam a atenção da funcionária. Debalde. Era como se existisse uma outra sala de espera, invisível, e os médicos teimassem em atender apenas as pessoas que lá tinham acampado. Impressionante o descaramento de alguns profissionais. A paciência de alguns doentes. Pagam para ser atendidos e fazem, ainda, o favor de esperar durante um tempo que se arrasta languidamente. Indecorosamente.
Drª….., pode entrar. - anunciou, triunfal, a empregada. A amiga também pode acompanhá-la… - continuou, esmorecendo, pouco a pouco, a simpatia e o sorriso de ocasião.
A ideia não era brilhante. Detestava tudo o que, minimamente, fizesse recordar a Santa Inquisição. Contudo, e perante a insistência da amiga - Vem, o meu médico é muito simpático e qualificado. Pode ser que até resolvas mudar de dentista… - encolheu os ombros, abanou afirmativamente a cabeça, preparando-se, estoicamente, para uma sessão sado-masoquista.

Então, por aqui? - cantarolou uma voz que presumiu ser a do médico. E, hoje, vem acompanhada… Muito bem.
Estendeu a mão em direcção a uma bata branca e, polidamente, sorriu. Ao encarar o olhar do médico, recuou ligeiramente, aturdida. A vida prega-nos cada partida. Tanto dentista na cidade e tinha que lhe sair aquele na rifa. O seu antigo namorado!
Ele, não manifestando qualquer sinal de desagrado, cumprimentou-a calorosamente. Francamente.
- Eu e a sua amiga somos velhos conhecidos, não é verdade? Não contava com tão agradável surpresa… Como estás?
Merda! - pensou, não sabendo bem como reagir. Ali estava o homem pelo qual vertera tanta lágrima. Tinham-se conhecido num movimento católico para jovens. Ela sempre o achara presumido, intelectual, chato, e nada faria supor que iriam viver uma bonita história de amor. Como começara tudo? Com uma dor de dentes, é claro. Durante um dos encontros, ela queixara-se e, de imediato, ele prontificara-se a levá-la ao consultório do pai, dentista de renome. A dor de dentes fora, pois, o início de um romance que durara três anos. Se tivesse sido mais inteligente, ter-se-ia apercebido do mau presságio que dera origem ao namoro. Ora, apesar de tudo fora um delicioso conto de fadas.
Entraram os dois na faculdade. Medicina, ele; Letras, ela. Diferentes interesses começaram a separá-los. Ele inscrevera-se como militante de um conhecido partido; ela teimara em não se deixar emaranhar nos tentáculos perniciosos dessa teia manhosa que se alimenta da avidez pelo poder.
Surgiram as primeiras zangas. As primeiras omissões também. E, com elas, os primeiros passos atrás.
- Não sejas parva! Se não pude estar contigo nos teus anos, foi porque estava em Lisboa. Preciso de liberdade e tu, com essas atitudes infantis, não ajudas nada. Por que razão insistes em não te filiar no partido? Teríamos algo em comum e deixarias de me maçar com essas dúvidas e incertezas próprias de uma rapariguinha do século passado.
Cretino! Algo em comum?! Não seria o amor o mais importante laço que devia uni-los?! – interrogava-se, tolamente, enquanto tentava ocultar uma lágrima menos disciplinada. Estúpido! Comecei a ler Marx e Kafka por tua causa. Leste, porventura, Sartre e Beauvoir para me agradar?! Há uns anos, nada te impediria de vir ao meu aniversário; hoje, e só porque és representante da juventude de um partido, festejar os meus anos tornou-se um acontecimento de ínfima importância. Aliás, nem chega a ser um acontecimento, tens toda a razão.
O fim anunciado aconteceu numa rally organizado pelas associações de estudantes de medicina e letras. Ele dissera-lhe que não podia ir. Ela resolvera, à última hora, acompanhar uns colegas de curso. A tragédia deu-se no momento em que o viu. E, ainda por cima, muito bem acompanhado. O que começara com uma dor de dentes, terminava com uma imensurável dor na alma.
Um curto telefonema pusera fim a uma estória que acreditaram eterna. O amor tem, afinal, prazo de validade. Doa a quem doer. Evitava a todo o custo locais e amigos que ambos frequentassem, partilhassem. Adiou sine die uma explicação. Quando se sentiu preparada para a pedir-dar, constatou que o esclarecimento já não era essencial. O tempo traz consigo uma compreensão clara do mundo e de tudo o que nos acontece. Uma única vez, em Coimbra, estiveram muito perto de uma aproximação. Nenhum, todavia, ousou investir no passado. Fizera-se tarde. No regresso, ele acompanhara-a a casa e despedira-se num registo calmo, amigo. Ela chorara toda a noite. Um orgulho tolo - ou a lucidez do “já foi”? - impelira-a a calar-se. A não fugir à realidade. Urgia pensar no hoje, não perder tempo a pensar nos erros passados, em tudo o que podia ter feito e não fizera. Era tempo de deixar de chegar atrasada ao encontro com a vida.
De quando em vez, ia sabendo dele pelo irmão. Casara com uma colega de curso dela. Divorciara-se. Voltara a casar. Tivera uma filha. Abrira consultório numa outra cidade. A partir de um determinado momento, nunca mais tivera notícias. Nunca mais se lembrara de perguntar. Assunto arrumado.

Ei-la, uns bons anos mais tarde, a cumprimentar uma história sem destino.
Estou bem… e … tu? - mal conseguia pronunciar o pronome. Era estranha a dificuldade que demonstrava com o emprego do “tu” relativamente a algumas pessoas. Respeito? Educação? Sim, perante algumas. Distância? Com umas tantas. Em alguns casos, porém, tratava-se de uma espécie de barreira invisível que impunha a si mesma e aos outros. Era como se o tratamento por “você” delineasse fronteiras que jamais deveriam ser transpostas. Uma espécie de não posso aceitar reservas mesmo sabendo que a lotação não esgosta.
A amiga, surpreendida, tentava acompanhar o fio condutor daquela cena - Que interessante coincidência. Ia lá imaginar que já se conheciam… Ainda bem que só disse bem de si, Dr. - acrescentou, divertida.
Se a memória não me falha, foi precisamente uma dor de dentes que esteve na origem do nosso conhecimento. Tive, desde sempre, uma queda para esta área - comentou, galhofeiro, o médico. Estão, portanto, em boas mãos. Sou um excelente dentista.
Mas terias sido um péssimo cardiologista! - pensou, enquanto juntava o seu sorriso aos dos seus interlocutores.

AMS