domingo, abril 01, 2007

Coincidências

Tenho dentista às seis. Vens comigo? Enquanto espero, podemos continuar o trabalho… - perguntara-lhe, hesitante, a amiga.
Visitas ao médico são, habitualmente, uma seca… Bom, se contarmos com uma hora de espera, ainda podemos acabar esta treta … Tudo bem. - arriscara. Afinal, tanto fazia esperar no café como no consultório. Além disso, a sua companhia serviria de válvula de escape à amiga. Dentistas? Um horror. Sentia-se sempre espiada até ao âmago quando era obrigada a visitar o seu. A cadeira provocava-lhe náuseas; intimidava-a a proximidade de uns olhos inquiridores sob a luz que a focava e não lhe permitia a mínima fuga; manietava-a a presença fria, metálica dos vários instrumentos perfurantes, levando-a a crer que não só os dentes estavam a ser minuciosamente observados, examinados. A alma também era vasculhada milímetro a milímetro. Sim, que a alma também dói. Pode ser uma dor súbita, cortante, desagradável - tal como acontece com a dor de dentes provocada, inesperadamente, pelo frio de uma bebida ou alimento - ou uma dor contínua, fina, insistente, capaz de nos arrastar ao desespero mais profundo. A única diferença que distingue a dor de dentes da dor de alma é que, para a primeira, há tratamento, analgésicos ou, e em situações limite, pode arrancar-se. A dor de alma, porém, não se cura com químicos, muito menos com panaceias. É como um abraço que vai, lentamente, esmagando. Dilacerando. Quando pensamos que é o fim, o abraço finge tornar-se mais lasso até que, de novo, começa a apertar. Num ciclo infernal. Interminável. Inumano.
Curioso o facto de os cientistas ainda não terem descoberto um lenitivo para este tipo de dor. Algo que esbata o sofrimento, os medos, o remorso, a inquietação, a lembrança, o silêncio. Um produto que desate os nós que nos unem, inexoravelmente, a ela. Que a afaste para longínquos espaços. Que a torne impessoal. Intransmissível. Irrenovável.
Dentistas? Um horror.

Na sala de espera - igual a tantas outras: a mesma empregada de sorriso automático, os mesmos sofás, a mesma mesa, os mesmos quadros, as mesmas revistas cheirando a mofo, até os mesmos pacientes passivos, resignados - renderam-se a uma espera longa. Sim, o trabalho ia ser profícuo.
De vez em quando, uma porta abria-se e alguém saía. Rostos esperançados requisitavam a atenção da funcionária. Debalde. Era como se existisse uma outra sala de espera, invisível, e os médicos teimassem em atender apenas as pessoas que lá tinham acampado. Impressionante o descaramento de alguns profissionais. A paciência de alguns doentes. Pagam para ser atendidos e fazem, ainda, o favor de esperar durante um tempo que se arrasta languidamente. Indecorosamente.
Drª….., pode entrar. - anunciou, triunfal, a empregada. A amiga também pode acompanhá-la… - continuou, esmorecendo, pouco a pouco, a simpatia e o sorriso de ocasião.
A ideia não era brilhante. Detestava tudo o que, minimamente, fizesse recordar a Santa Inquisição. Contudo, e perante a insistência da amiga - Vem, o meu médico é muito simpático e qualificado. Pode ser que até resolvas mudar de dentista… - encolheu os ombros, abanou afirmativamente a cabeça, preparando-se, estoicamente, para uma sessão sado-masoquista.

Então, por aqui? - cantarolou uma voz que presumiu ser a do médico. E, hoje, vem acompanhada… Muito bem.
Estendeu a mão em direcção a uma bata branca e, polidamente, sorriu. Ao encarar o olhar do médico, recuou ligeiramente, aturdida. A vida prega-nos cada partida. Tanto dentista na cidade e tinha que lhe sair aquele na rifa. O seu antigo namorado!
Ele, não manifestando qualquer sinal de desagrado, cumprimentou-a calorosamente. Francamente.
- Eu e a sua amiga somos velhos conhecidos, não é verdade? Não contava com tão agradável surpresa… Como estás?
Merda! - pensou, não sabendo bem como reagir. Ali estava o homem pelo qual vertera tanta lágrima. Tinham-se conhecido num movimento católico para jovens. Ela sempre o achara presumido, intelectual, chato, e nada faria supor que iriam viver uma bonita história de amor. Como começara tudo? Com uma dor de dentes, é claro. Durante um dos encontros, ela queixara-se e, de imediato, ele prontificara-se a levá-la ao consultório do pai, dentista de renome. A dor de dentes fora, pois, o início de um romance que durara três anos. Se tivesse sido mais inteligente, ter-se-ia apercebido do mau presságio que dera origem ao namoro. Ora, apesar de tudo fora um delicioso conto de fadas.
Entraram os dois na faculdade. Medicina, ele; Letras, ela. Diferentes interesses começaram a separá-los. Ele inscrevera-se como militante de um conhecido partido; ela teimara em não se deixar emaranhar nos tentáculos perniciosos dessa teia manhosa que se alimenta da avidez pelo poder.
Surgiram as primeiras zangas. As primeiras omissões também. E, com elas, os primeiros passos atrás.
- Não sejas parva! Se não pude estar contigo nos teus anos, foi porque estava em Lisboa. Preciso de liberdade e tu, com essas atitudes infantis, não ajudas nada. Por que razão insistes em não te filiar no partido? Teríamos algo em comum e deixarias de me maçar com essas dúvidas e incertezas próprias de uma rapariguinha do século passado.
Cretino! Algo em comum?! Não seria o amor o mais importante laço que devia uni-los?! – interrogava-se, tolamente, enquanto tentava ocultar uma lágrima menos disciplinada. Estúpido! Comecei a ler Marx e Kafka por tua causa. Leste, porventura, Sartre e Beauvoir para me agradar?! Há uns anos, nada te impediria de vir ao meu aniversário; hoje, e só porque és representante da juventude de um partido, festejar os meus anos tornou-se um acontecimento de ínfima importância. Aliás, nem chega a ser um acontecimento, tens toda a razão.
O fim anunciado aconteceu numa rally organizado pelas associações de estudantes de medicina e letras. Ele dissera-lhe que não podia ir. Ela resolvera, à última hora, acompanhar uns colegas de curso. A tragédia deu-se no momento em que o viu. E, ainda por cima, muito bem acompanhado. O que começara com uma dor de dentes, terminava com uma imensurável dor na alma.
Um curto telefonema pusera fim a uma estória que acreditaram eterna. O amor tem, afinal, prazo de validade. Doa a quem doer. Evitava a todo o custo locais e amigos que ambos frequentassem, partilhassem. Adiou sine die uma explicação. Quando se sentiu preparada para a pedir-dar, constatou que o esclarecimento já não era essencial. O tempo traz consigo uma compreensão clara do mundo e de tudo o que nos acontece. Uma única vez, em Coimbra, estiveram muito perto de uma aproximação. Nenhum, todavia, ousou investir no passado. Fizera-se tarde. No regresso, ele acompanhara-a a casa e despedira-se num registo calmo, amigo. Ela chorara toda a noite. Um orgulho tolo - ou a lucidez do “já foi”? - impelira-a a calar-se. A não fugir à realidade. Urgia pensar no hoje, não perder tempo a pensar nos erros passados, em tudo o que podia ter feito e não fizera. Era tempo de deixar de chegar atrasada ao encontro com a vida.
De quando em vez, ia sabendo dele pelo irmão. Casara com uma colega de curso dela. Divorciara-se. Voltara a casar. Tivera uma filha. Abrira consultório numa outra cidade. A partir de um determinado momento, nunca mais tivera notícias. Nunca mais se lembrara de perguntar. Assunto arrumado.

Ei-la, uns bons anos mais tarde, a cumprimentar uma história sem destino.
Estou bem… e … tu? - mal conseguia pronunciar o pronome. Era estranha a dificuldade que demonstrava com o emprego do “tu” relativamente a algumas pessoas. Respeito? Educação? Sim, perante algumas. Distância? Com umas tantas. Em alguns casos, porém, tratava-se de uma espécie de barreira invisível que impunha a si mesma e aos outros. Era como se o tratamento por “você” delineasse fronteiras que jamais deveriam ser transpostas. Uma espécie de não posso aceitar reservas mesmo sabendo que a lotação não esgosta.
A amiga, surpreendida, tentava acompanhar o fio condutor daquela cena - Que interessante coincidência. Ia lá imaginar que já se conheciam… Ainda bem que só disse bem de si, Dr. - acrescentou, divertida.
Se a memória não me falha, foi precisamente uma dor de dentes que esteve na origem do nosso conhecimento. Tive, desde sempre, uma queda para esta área - comentou, galhofeiro, o médico. Estão, portanto, em boas mãos. Sou um excelente dentista.
Mas terias sido um péssimo cardiologista! - pensou, enquanto juntava o seu sorriso aos dos seus interlocutores.

AMS