domingo, dezembro 31, 2006

2007 - "... abrir mão da vida para que os outros vivam"

Não acredito em poções mágicas! Ano novo, vida nova? As pessoas não mudam com um simples abracadabra. De que adianta, então, afirmar com uma convicção inabalável, inacessível à hesitação - vou mudar!? O universo. O mundo. Os outros. Sim, porque o mal nunca parte de nós. As mudanças devem ocorrer… nos outros. Sempre. Nós somos o exemplo e a imagem da perfeição. Ou quase. Erros? Ora, o erro - em nós - aceita-se. Até é natural, tendo em conta uma certa fraqueza humana. Além disso, há a esperança. A doce esperança! De que a humanidade, virada do avesso, retome a sua órbita. Certinha, pois. Sem transgressões, claro. Num movimento que recopie os nossos passos. A nossa “autenticidade”. A nossa “verdade”. As nossas encenações.

Ano novo, atitudes novas. Isso. Responsabilizando os outros. Fazendo-lhes sentir que superfície e profundidade não são coisas que se tenham, mas algo que se é ou não se é. Eles - sempre os outros - vivem à margem da nossa moral, da nossa seriedade, da nossa inteligência, enfim, da nossa análise profunda.
Quanto a nós, se não somos bons, desejávamos ser. Se não somos autênticos, imitamos muito bem. Se não vemos, ou não queremos ver, não somos responsáveis - bem-aventurados os cegos, porque deles será a tranquilidade de espírito. E da consciência, acrescento eu.

2007 será apenas o caminho que escolhermos. Com chuva. Com sol. Com céu azul. Com nuvens toldando o céu. Com alienação. Com uma compreensão clara do mundo. Com erros. Com todos nós, inteiros, ainda que com alguns pedaços da alma mais ou menos por colar, tentando, de novo, elaborar qualquer coisa que se assemelhe a uma vida não desperdiçada.

Não acredito em poções mágicas. Acredito, contudo, que, se hoje ou ontem choveu, o sol terá nascido, seguramente, em outros lugares. E acredito, acima de tudo, que a felicidade é a medida da procura, não da consumação. Assim, nada prometerei. Nem hossanas, nem ressurreições, nem palavras cheias de amor… pelo ódio. Muito menos um sorriso transversal do tamanho do equador… para mais tarde se esquecer. Tentarei, isso sim, “fazer de cada perda uma raiz/ E improvavelmente ser feliz”.
Podem contar com isso.

AMS

quinta-feira, dezembro 28, 2006

O Presente

Acordou cedo. Por qualquer circunstância que não conseguia recordar, despertara, súbita e nitidamente, pela mão estridente do silêncio, despida de inquietações, é certo, mas ausente da decisão de caminhar ao encontro do dia que começava. Talvez o silêncio, talvez aquela estranha sensação de poder viajar, como por osmose, para o interior de si - ou para qualquer outro lugar - fizessem com que sentisse que tudo é, realmente, uma questão de perspectiva.
Ontem, por exemplo, sentira-se extremamente desamparada, abatida. Inicialmente, tentara associar-se à alegria borbulhante dos outros.Todavia, revelara uma total falta de jeito para se mostrar divertida, encantada, disponível. Crispavam-se o sorriso, a alma. Não queria limitar fronteiras. Porém, quanto mais a boa disposição se agigantava, durante o jantar, mais ela se esquivava numa órbita diferente, em direcções diferentes, opostas até. Uma maneira estúpida de gerir lembranças doídas, numa noite especial. Sim, aquela noite era diferente. Uma espécie de aconchego para o espírito. E por isso, tolamente, tentara combatê-la. Combater-se. Há certos "fantasmas" que, nessa data, parecem ensombrar mais a vida, tentando ofuscar a claridade, toldando os sentidos. Não deixando perceber que é preciso recomeçar a viagem - as vezes que forem necessárias - com uma esperança inabalável. Sempre.
Não deixava de ter piada. Por um lado, embora não estivesse feliz, queria parecê-lo. Esforçava-se por parecê-lo; por outro, detestava-se por ser incapaz de decidir, com exactidão, o papel a desempenhar. Havia falta de unidade na sua encenação. Ao tentarmos ser várias pessoas, corremos o risco de ser… ninguém.
Raios! Por que maldita sina, hoje, acordara tão cedo e tão lúcida? Logo hoje!
Fechou os olhos. Tentou recuperar o sono perdido. Em vão. Desistia!
Levantou-se, enfiou os chinelos e foi sentar-se, no sofá da sala. Alguém deixara as luzes do pinheiro de natal acesas. A filha resolvera decorar a árvore apenas em dois tons: vermelho e dourado. Olhou atentamente - talvez pela “primeira” vez - a decoração cintilante da árvore. Estava bonita! - tinha de admitir. No chão, ficara um presente esquecido. Esquecido? Sim, teimosa, anonimamente esquecido, ignorado. Lembrava-se que, mal entrara na loja, o brinquedo captara a sua atenção. Uma espécie de girândola de estrelas multicolores que intercalavam com bonecos variados e igualmente apelativos.
- É o brinquedo ideal para um bebé. Ao puxar-lhe o cordel, os bonecos começam a girar ao som de uma música. Experimente.
Experimentara. Era, efectivamente, um brinquedo delicioso. As estrelas, as borboletas, os ursinhos, tudo rodopiava, serenamente, ao som de “The Little Drummer Boy”. Era como imaginar-se num mundo perfeito, sem escuro, sem papões, sem medos.
Mandara embrulhá-lo e, secretamente, colocara-o no meio dos outros presentes. Como se assim pudesse disfarçar a mágoa, o carinho, a vontade louca de conhecer o João.
O presente ali ficara. Sozinho. Mudo. Expectante. E era Natal! E era dia de ser bom. E era dia de perdoar! Mas o Natal doía-lhe. Aquele Natal em especial. Doía-lhe como uma culpa sem causa. Ou com causa já esquecida…
Está ali sentada e não sabe porquê. As luzes do pinheiro continuam a piscar. Estranhamente não lhe ocorre sequer afastar a solidão daquela manhã fria e cinzenta. Esse encontro consigo é uma espécie de privilégio.
O olhar percorre a sala com uma vaga compaixão por si mesma. Ou pela vida?! A sua? A dos outros? Enquanto o pensamento continua a balouçar sem alibi, o olhar prende-se ao recolhimento e misticismo do velho presépio. Eis uma tradição da qual não abdicara - o presépio antigo da sua meninice. Sorri. Algumas das figuras já estão desbotadas e a precisar de restauro. O menino - coitado - já perdera o ar rosado de recém-nascido e tem, presentemente, um ar amarelecido. Assim como os bebés que nascem com icterícia. Volta a sorrir com a tolice da comparação. Ao São José parece faltar um dedo. Só a Virgem mantém a candura da mãe olhando, embevecida, o filho.
Inexplicavelmente, pega no embrulho abandonado, no chão. Abre-o. Monta-o. Puxa o cordel e, de imediato, as primeiras notas fazem-se ouvir. Quase em simultâneo, as estrelas, as borboletas, os ursinhos começam um voltear gracioso.
Estranho! A estatueta do menino Jesus adquirira - pura ilusão, obviamente - um tom cheio de vida e, por breves segundos, pareceu-lhe que agitava mãos e pernas, tenras e macias, numa alegria incontida. A mesma alegria que, sem sombra de dúvida, o sobrinho teria se visse o brinquedo.
Levantou-se. Entreabriu as persianas. A música absorvia totalmente o silêncio. Voltou a observar as figuras do velho presépio. Estava, decididamente, louca! Numa das mãozitas, o menino segurava uma estrela; na outra, uma borboleta batia, tremulamente, as asas coloridas e transparentes.

AMS

Nota: este ano, finalmente, ela conheceu o João.

Um conto de Natal

O que vou contar aconteceu há muitos, muitos anos, numa pequena aldeia perdida entre rochas e penhascos, tão deserdada de tudo como os seus poucos habitantes. Gente humilde, simples, habituada à dureza escarpada da vida. No verão, corpos e rostos magoados pelo calor do sol em brasa, escurecidos de pó, aguilhados pelo destino de ter de labutar pelo pão com o seu suor; no inverno, gelados, petrificados num estertor de agonia e resignação. Naquele lugarejo escondido, perdido entre fragas e penedias, havia fome de quase tudo. Não chegavam notícias, não havia médicos e até a avidez dos políticos, com as suas promessas inúteis, cheias de nada , parecia ignorar aquele grupo de pessoas afastadas do resto do mundo. Apenas numa noite, numa única noite do ano, a pequena aldeia cintilava de sonho, encantamento e brilho de estrelas.Com efeito, todos os anos, na noite de 24 de Dezembro, como por magia ou sei lá que mística explicação, aquelas vidas ultrapassavam a dura realidade do quotidiano, a miséria dos que nada pedem, julgando nada ter a pedir e, longe das convenções teatrais da época natalícia, dos gestos apressados e acessórios, repetidos, mecanicamente, uma única vez no ano, longe dos pinheiros e abraços de plástico, das luzes e palavras artificiais, enfim, longe da mesquinhez e miséria humanas, aquele pequeno enxame dirigia-se, solene e alegremente à pequena capela, tosca e fria, para, aí, partilharem a fé, a simbologia e a beleza daquela noite especial.É natural, dirão alguns! Tratava-se de um meio rural, logo, primitivamente religioso. Sim, dirão os cépticos e descrentes - é natural! O que não é tão natural, aquilo que foge aos cânones rígidos e espartilhados do homem "civilizado" é que, numa dessas noites de Natal, quase afagando a eternidade, algo de extraordinário veio quebrar a quietude morna e aconchegante daquela gente simples. Quando, na pequena e rústica capela, perto da meia-noite, as orações e os cânticos se elevavam ao céu, contam os filhos dos filhos dos que lá estavam que, num milagre prodigioso - miragem colectiva, continuarão a afirmar os mais cépticos - uma estrela encheu de brilho e esplendor o recinto de pedra da pequena capela. Que aconteceu depois? Os relatos perdem-se nas teias do tempo... Sei, apenas, que aquelas pessoas habituadas ao silêncio martirizado de criaturas vivas e prisioneiras da indiferença e incúria de outras criaturas menos vivas e mais miseráveis, foram, talvez por isso mesmo, escolhidas para protagonizarem aquela história antiga que falava de uma estrela, de pobreza e de um rei universal. Sei, também, que aquela pequena e oculta aldeia, desnuda de preconceitos, vaidades e egoísmos, despiu-se, naquela noite, de cardos e cobriu-se de bençãos.

AMS

quarta-feira, dezembro 27, 2006

Diz-me

De quantos suspensos gestos,
diz-me,
se faz distância?

De quantas ilhas desertas um adeus?
Nada é gratuito. Nem a ventura. Nem o amor.
Nem os dias aquecidos no regaço da espera.
E a vida, dobada na vertigem do instante,
desenha um sempre que nada dura.
Um ainda que já se foi. Um quase que nunca é.

De quantos negros despojos,
diz-me,
se adubam sonhos?

AMS

segunda-feira, dezembro 25, 2006

FELIZ NATAL!

A Estrela caminhava pelo Céu
Indicando a todos o caminho
Da Luz e do linho do seu berço
E a Salvação que não tem preço.

José Almeida da Silva

domingo, dezembro 24, 2006

Quem sabe de TI?

Quem sabe de TI o espírito,
O branco do silêncio, a renovada luz,
A paz imensa que embrulha, como forma
Poderosa - e pequenina -
O ciclo breve da tua eternidade?

Em que rua, em que beco,
- Para além da poeira do já visto -
Retomas, luminoso,
O reencontro do gesto
Com a amena cadência da alma?

Quem sabe de TI, Natal?

AMS

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Palavras...

Às vezes - quantas vezes - falar para o papel é bem mais fácil do que falar com as pessoas.
O curioso é que nesta partilha, aparentemente, desequilibrada - emissor/papel - há um equilíbrio singular, único.
Como é horrível - e abominavelmente chato - falar com pessoas que não sabem - ou não querem - pegar, cuidadosamente, nas palavras. Daquelas palavras que tocam. Daquelas que ramificam e arrastam consigo ideais. Daquelas que carregam um sonho, mesmo que velho e de asas pisadas.
E há palavras tão bonitas. Palavras que, por si só, são um olhar tranquilizador e solidário. Palavras repletas de alívio, partilha, ternura.
Daí, esta quase cumplicidade com o papel. É uma espécie de encontro aprazível com as palavras, deixando que elas saiam de mim nascidas de um lugar que, como diria Bernardo Soares, "se pudesse pensar, pararia." Sim, claro, o coração. Que poucos sabem ler. Que, raramente, poucos sabem sentir. E é, talvez, esta certeza - esta lucidez - que me afasta, muitas vezes, das pessoas e me aproxima do papel.
Ele sabe que não são só palavras o que escrevo. Intui, percebe que as palavras são sinais. Umas vezes, que tudo me dão e tudo me trazem; outras, de tudo o que me deram... tudo me falta.
É tudo uma questão de perspectiva - dirão. Será...
No entretanto, vou colocando no papel as minhas palavras, o meu silêncio, a minha alma.

AMS

quinta-feira, dezembro 21, 2006

Felizes os pobres de espírito

A senhoreca seguia à minha frente. Andar altivo, submerso de prepotência, projectava novo-riquismo e presunção em cada passo. Toda aquela imponência emanava um não sei quê de fictício, burlesco, atarracada mentalidade.
Em abono da verdade, tal “caniche” saltitante teria passado a mil léguas submarinas do meu olhar, não fosse o alarido provocado pelos sacos e saquinhos que ela agarrava, preciosamente, com as suas “maozinhas” gorduchas - presumo que escorregadias - e carregadas de anéis. Bastou-me subir uns centímetros com o olhar e… eis as pulseiras e pulseirinhas, ouro a farnel, para gozo da proprietária e de quantos, como eu, se deleitavam com a joalharia exposta.
E a dita senhora não teria o direito de se apresentar como quisesse? Ainda que parecesse uma árvore de natal carregadinha de enfeites multicolores? - perguntará, acertadamente, o leitor. É claro que sim. Obviamente que cada um tem o direito de fazer o que lhe der na real gana, pavoneando-se, em Santa Catarina, no traje que mais lhe aprouver. Só que o grotesco era de tal maneira chamejante, apelativo, o verniz de tal modo estaladiço que eu - mea culpa - não conseguia parar de rir cá por dentro e, volto a penitenciar-me, espraiar a imaginação em cenas mais ou menos caricatas, tendo como protagonista a balofa lady.
A certa altura - puro acaso? - ambas parámos em frente à montra de uma sapataria. Não resisti. De soslaio, alonguei o canto do olho em direcção ao escaparate ambulante. Certinho. A pintura, o ouro - ou fantasia - o decote mostrando uns seios dignos das melhores amas do renascimento, enfim, todo o conjunto era um quadro por demais bizarro, por demais surrealista.
A história teria terminado aqui. Aquele clone de uma qualquer Lili Caneças deixara de me despertar curiosidade. Assim, passei a observar os sapatos coloridos - com preços bem menos coloridos - recomendados para a estação primavera/verão.
Subitamente, ouço alguém dizer em tom lamuriante: - “Dê-me uma esmolinha…”. Era um mendigo sentado numa das esquinas da montra da sapataria. Um entre tantos, daqueles em quem já não reparamos, umas vezes por medo de sermos enganados, outras… porque dá mais jeito fingir que não vemos, enrodilhados que estamos em obrigações, normas, compadrios e merdinhas desse género. Não nego - sei-o por experiência própria - que alguns deles são “poseurs” profissionais, actores de prodigioso talento, expondo uma miséria artificial. A outra, a verdadeira miséria, a que pertence a todos nós e é fruto de uma sociedadade que se habituou a parir indigentes, porque não sabe fazer outra coisa, bem, essa está oculta ou, pelo menos, disfarçada.
A melopeia continuava: - “Dê-me uma esmolinha, minha rica senhora…”. Eu começava a sentir-me incomodada e sem saber bem o que fazer: - “Dou… não dou… e se é tudo treta… e se não é… “ - quando uma voz estridente, irritantemente aguda, atirou estas pérolas: - “ Vá trabalhar! A vida custa a todos. Cambada de malandros!”.
O verniz tinha estalado de uma ponta à outra. Uma aragem sórdida, mesquinha, bafienta tinha, de repente, invadido o espaço onde me encontrava. Aquelas palavras vexantes tinham, sabiamente, saído da boquinha espremidinha do “meu caniche”. Olhei-a, usando o mesmo ar de desdém com que ela amarfanhava os outros. Não disse nada, mas pensei: - “ Ouve lá, ó sua pindérica, tu até podes não dar esmola. Provavelmente, eu também não iria dar - já céptica q.b., embrulhada num marasmo de mentiras e verdades… - mas era preciso humilhar, madame?”
O mendigo - há quem defenda que a palavra apropriada é vagabundo… - mirou a dona, remirou-a e, tirando uma moeda do boné que jazia sobre os joelhos, estendeu-lha, dizendo: -“Tem razão, minha senhora, tem razão… A vida custa a todos. Tome, é pouco mas é de boa vontade… Aceite… a pobreza partilhada pesa menos.
Felizes os pobres de espírito?!

AMS

terça-feira, dezembro 19, 2006

natal de todos

Quando é Natal
O mundo fica diferente
Não sei o que me faz pressentir
Algo de infinito no existir
Como uma claridade que me encanta
E me faz voltar a mim
Sem fugir dos outros

Quando é Natal
Embora haja uma oração que não rezo
Há um olhar à volta
De tudo o que me cerca
E sem ressentimentos
Liberta do que me faz ser
Diferente do que em mim sou
Na leveza da consciência que se abre
Enfeito o mundo de alegria
Prendo ternura nos rostos
Amizade nos abraços
Sol nas mãos que se dão
Doçura nas palavras
Estrelas no coração

Quando é Natal
Afasto a secura da vida
O engano das ilusões
A poeira das lembranças
Desembrulho o amor recalcado
Dispo-o de artifícios
E num gesto natural
Tento fazer do meu, do teu, do nosso Natal
A tal consoada Universal!

AMS

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Natal

ACONTECIA. NO VENTO. NA CHUVA. ACONTECIA./ ERA GENTE A CORRER PELA MÚSICA ACIMA./ UMA ONDA UMA FESTA. PALAVRAS A SALTAR.

ERAM CARPAS OU MÃOS. UM SOLUÇO UMA RIMA./ GUITARRAS GUITARRAS. OU TALVEZ MAR. NO VENTO. NA CHUVA. ACONTECIA.

NATAL NATAL (DIZIAM). E ACONTECIA./ COMO SE FOSSE NA PALAVRA A ROSA BRAVA/ ACONTECIA. E ERA DEZEMBRO QUE FLORIA (...)


Manuel Alegre


Uma vez mais o mundo entoa Natal! Natal!Natal!
Há homens que vivem esta época numa atmosfera cintilante de banalidades. Têm em demasia o que falta aos outros. Deturpam o verbo amar - esquecendo os gestos de partilha - emaranhados nas teias espessas do egoísmo, da futilidade e de um tempo de perdas.
Outros há - e tantos - que, na escuridão da sua solidão amarga, persistente, duradoura, apenas ouvem entoar a palavra INJUSTIÇA, a palavra PRECONCEITO, a palavra ABANDONO, a palavra DESABRIGO, a palavra ESQUECIMENTO, a palavra DESAMOR.
É urgente que o Natal aconteça em cada um de nós. Que o tempo de perda seja um tempo de encontro. Que o tempo de esquecimento seja um tempo de abraços.
E porque a amizade é um sentimento - o maior - onde se acolhe a respiração do outro, não esqueçamos o seu toque. O da ternura. Sim, o da ternura.

AMS

domingo, dezembro 17, 2006

Maio acontece

Tenho para ti esta mão estendida cheia de liberdade pura
de nós próprios. Aperta-a sem perguntas. Sem tocar a lenta
agonia da dúvida. Sente apenas a íntima plenitude. A esperança
indizível, mas vibrante. O que desperta, permanece, floresce.

Aperta a minha mão e vem comigo. Acabou-se o tempo de amargura
num céu quadriculado de linhas chuvosas. Tudo o que eu amo
quer nascer neste instante. Liberdade, dignidade, paz, verdade.

Maio acontece na serena adolescência do tempo. E com ele é mais
fácil aprender-te num gesto livre que se entrega ao entendimento
da vontade. Maio acontece numa flor germinando sem pressa,
enquanto a vida desenha, docemente, uma verde alegria, fonte de
promessa, raiz do início, na mão que te estendo. E tu apertas.

AMS

VENDILHÕES, CAMALEÕES & SA

Os vendilhões fossilizados dos Templos
vendem, trocam tudo ao desbarato,
num frenesim, num delírio de comércio
sem regras, sem moral e sem recato.
Vendem graxa, mentiras cruzadas a ponto cruz,
verdades laváveis em detergentes de truz.
Vendem sonhos, vendem Deus, vendem a alma
com artimanhas de leiloeiros, num mercado de
agiotas, fariseus, missionários de algibeira
prontos a converter - dura canseira ! -
as ovelhas tresmalhadas, vulgarmente ranhosas,
que ousam, num atentado ao (in)pudor,
à (i)moralidade pública, ao bom nome
dos santos e esquecidos mandamentos cristãos,
mandar tudo às urtigas, fazer-lhes figas,
e em versos de dúbio sentido, anilhada ironia,
proclamar, por decreto-geral, guerra aos vendilhões,
aos que nos vendem gato por lebre, nos impingem,
de barriga cheia, a sua fome de, na lama, chafurdar.

Aos vencidos que se dizem vencedores!
Aos que nos querem enganar com parábolas
de amor em banho-maria, empacotadas emoções,
bélica harmonia de celestiais predadores!

Enfim, aos torcidos, retorcidos camaleões!

AMS

sábado, dezembro 16, 2006

aMiZaDe


Sempre que estendes a mão,
- esse mar de afeição
que há em ti -
dissolvendo a negrura que
tinge o coração de pertinaz
tristeza, silente amargura,

a luz senta-se no beiral
do gesto,
o dia volta a nascer,
e a amizade
- subvertendo o pensamento
vestido de cinza, lava
desencanto -
arrasta consigo
a alegria
que, de novo, germina
- numa toada clara, repartida -
na penumbra dos meus olhos.

AMS

O senhor dos anéis

Não, não se trata de mais uma saga da famosa trilogia. Em boa verdade, nesta breve croniqueta, não entram trolls, elfos, aranhas gigantes, orcs e outras criaturas fantásticas. A figura principal, um misto de Smeagol, Saruman e Calisto Elói é, na realidade, um homem, aparentemente comum, daqueles que se cruzam connosco num elevador, por exemplo. Apenas com uma subtil particularidade, uma mania bizarra, hilariante, tipo "American dream". Esta avis rara tem, por vezes, acessos delirantes de sapiência, versatilidade e divina inspiração. Julga-se uma espécie de cruzamento genético, um cocktail misturando Baptista-Bastos - sem laço - Miguel Esteves Cardoso - sem tiques - Harry Potter - sem vassoura - e homem invisível - sem truques ou magia. Polémico, metediço, trama, na macieza da cama - e na agrura das insónias - as mais "uanderful" historietas, as aparições menos desejadas, as críticas mais acutilantes - pensa ele - e o mais sensaborão dos discurso - “Belarmino”, comparado aos seus “ensaios”, surge como um grandioso argumento de capa e espada. E o pior, o pior é que nunca se satisfaz e tem um apetite ávido por “admiradores” incautos e inócuos, mas sempre dispostos a lançar um OHHHHH de preito, adoração, bajulação. O equivalente, creio, ao superlativo absoluto de "este tipo é mesmo muitA bom!".
Convencido, arrogante, amoral , desconhecendo - conveniente e conscientemente - os seus domínios e limites, arroga-se o direito de enganar, gozar, ludibriar ciente de que, qual Cavaco Silva, nunca se engana e raramente tem dúvidas.
Como este senhor dos “anéis” há, certamente, outros senhores - ainda que sem anéis. Já diz o ditado: vão-se os anéis, fiquem os dedos… Não consta, porém, nenhuma obra com o título singular de “O Senhor dos Dedos”. Assim sendo, volto à bijuteria...
No entanto, quem sabe se, por total ironia do destino, um pequeno e humilde hobbit, fará tombar - qual David - as mascaradas deste suserano e, consequentemente, remeterá, para a estante dos livros esquecidos, a famosa e conceituada saga literária. Será, então, o fim? Estão enganados. Nem sempre o vilão é um verdadeiro mau da fita e de Saruman a anjo a distância é curta, meus amigos. Basta uma queda, uma simples queda e… temos um anjo depenado, desmascarado... mas gloriosamente convencido da sua inteligente superioridade. Seja como for, há-de sempre safar-se. Com ou sem anel - embora seja um nadinha diferente, advirto. Fica ao gosto do leitor.

AMS

Nota: Qualquer semelhança com a realidade... é isso mesmo. Realidade!

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Natal Na Alma

Céu de chumbo de meados de Dezembro.
Cada vez mais cedo - que urge fazer esquecer a crise - os nossos governantes mandam tecer grinaldas de lâmpadas com que, uma vez mais - em vão! - tentam florir Dezembro e o sempre Natal do nosso contentamento.
É incontestável que a época que atravessamos parece mais feérica do que nunca; que, envoltas em sons festivos e clarões de milhares de luzinhas, as pessoas parecem mais felizes. Mais atordoadas?
Só que, algures, na escuridão dos nossos medo, das nossas incúrias - que tentamos ocultar ou ignorar - há guerra, há fome, há miséria, insegurança, paz procurada na ponta das armas, crianças maltratadas, mutiladas, moribundas... E há olhos que não querem ver. E há bocas cerradas. E há o silêncio dos inocentes.
Tudo isto esquecido, escondido, banalizado na decorrência apática, alheada, inconsciente do nosso viver.
Diz um provérbio chinês que "as palavras são sons do coração". Assim sendo, homens de boa vontade, é urgente tornar "universal a consoada"!
Gosto da festa de Natal, não o nego. Parece que as pessoas se transformam: ficam menos desnudas de sentimentos, mais prontas a "dar-se" e, claro, mais prontas a gastar. Assumo, igualmente, que faço parte da manada consumista e hipócrita que faz do Natal um templo cheio de "vendilhões". Não creio, contudo, que valha a pena criar bodes expiatórios para as nossas misérias nem, tão-pouco, reinventar modernos infernos para os punir. Basta que tenhamos vergonha na cara, pelo menos neste Natal. Aliás, não deixa de ser irónico - e incrivelmente folclórico - o virtual desejo que todos apregoam de, num único dia do ano, fazer do mundo o tal paraíso. Voltar, enfim, à época de ouro da humanidade durante... vinte e quatro horas.
Por outro lado, o "poder" também contribui para aumentar o caos. Dir-se-ia que vive dele. Não só admite a miséria como ele próprio a patrocina; não só admite a violência como também a perpetua; não só defende a intolerância como também faz propagar a injustiça.
Solução - Precisa-se! Justiça - Exige-se! Mudança - Para quando?
Falta-nos união. Falta-nos coragem. Falta-nos carácter.
Se cada um de nós - homens de boa vontade? - tentasse solidarizar-se com todos aqueles que são vítimas inocentes da insanidade colectiva da humanidade e do peso dos "pecados" estruturais das sociedades ditas civilizacionais; se cada um de nós dissesse não à bestialidade e brutalidade que nos cercam, apressando-se a exortar nos mais jovens sentimentos de solidariedade, fraternidade e igualdade, quem sabe se algo não mudaria?! Quem sabe se, desse modo, a vida e a dignidade humanas não passariam a valer mais do que um punhado de diamantes, uns poços de petróleo, uma amálgama de armas sofisticadas?!
Desejos. Ilusões. Só isso? Não. A tua obra-prima, Deus de todos nós - embora me pareça, às vezes, que só de alguns, desculpa... - já não está perfeita. Tanta coisa a emendar. Tanta coisa a modificar. Terei, teremos de melhorar um pouco mais. Bastante mais. E descobrir em cada outro o teu rosto!

AMS

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Halo Negro (ou alguém que não sabe que o "rei vem nu"..)

Há almas, tão tragicamente nuas,
tão secas de ternura,
tão nocturnas de afecto e de entrega,
que asfixiam a vida,
incineram o amor.

AMS

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Lembranças...

Nunca me habituei à vida frenética, turbulenta, fechada da cidade. É como se, mesmo brilhando o sol, o céu continuasse friamente acinzentado, hostil, sem respostas. E, confesso, não gosto de circular no meio da multidão anónima, apressada, igualmente fria, cinzenta e indiferente. Assumo, definitivamente, o meu estatuto de mulher rural que não conseguirá jamais integrar-se neste círculo rígido que me dá sempre a sensação de uma selva cerrada e hostil. Adoro o campo. Suponho que as paisagens verdes e abertas marcaram para sempre a minha personalidade. Na cidade, tudo tem um ar desesperançado, de braços caídos ao longo do corpo; no campo, há, na paisagem e nas pessoas, qualquer coisa de mágico, de sonho, que impede que a realidade se insinue e nos torne amargos.
Revejo Britiande, a pequena vila que enquadra a minha infância. As crianças a brincarem no adro da igreja. No meio delas, uma, de longas tranças louras, parece-me familiar. Jogam "à corda" enquanto esperam pela hora da catequese. Com que nitidez todas estas imagens passam diante de mim: as casas pitorescas, a igreja, o cemitério, os rostos tisnados pelo sol dizendo sempre que passam por alguém - Santo dia! Qualquer coisa de infantil, mas natural. Revejo o serão passado junto à lareira. Quantos rostos amados que já partiram! Quanta saudade! E as histórias contadas aos mais pequenos?! E os lobisomens?! E o pobre coitado que "corria fado"?! E os tesouros enterrados à espera que uma palavra os fizesse aparecer diante dos mais audazes?! E o terço - que fastidioso e sonolento era! - que recitávamos como se fosse tabuada? E a menina das tranças que tinha medo do papão e que jogava à "cabra-cega"?! Velhos tempos impregnados da frescura do orvalho e de mil perfumes suavíssimos. Com que saudade os afago... O presente? O presente é a secura desgastante das coisas e das pessoas. Já não há serões de poesia junto à lareira. Apenas morrinha de brasas apagadas.

AMS

nós por cá

Sei que vão chover críticas, quero dizer, mentalmente, claro. Não é suposto um qualquer leitor dar-se ao trabalho de comentar um blog “cinzentão", sem anedotas, textos eróticos q.b, bonequinhos a mendigar um sorriso - ainda que amarelo… - poemas onde emoção rima com um beijo no seu coração… enfim… Vão chover críticas, esgares de desdém, sorrisos de quem se sabe superior, mas vou arriscar. Afinal, é Natal! Não é suposto, nesta época, perdoarmos aos nossos amigos - e alguns inimigos… noblesse oblige! - certas atitudes que, aos nossos olhos de pessoas perfeitas, idóneas, são fruto de mentes pueris e vulgares?!

Adoro o jet-set português. Adoro as Lilis Caneças, as Cinhas, as Pituxas, as Bibás, os condes, os marqueses… adoro-os! Têm “pinta" - é a tradução que encontrei mais à mão para glamour - têm colorido, têm silicone, têm muita lata. E não é que os ricos e as ricas até são amigos dos pobrezinhos?! Bem se diz que quem vê plásticas... não vê corações. Claro que glamour é glamour, ou seja, ou se nasce colunável ou se morre pelintra. Vocês sabiam que um palavrão na boca de uma Cinha Jardim é chique e que proferido por uma qualquer gentinha da arraia-miúda é... obscenamente pimba? Pois é. Por exemplo, se eu escrever aqui a palavra MERDA, podem ter a certeza de que isso não é politicamente fino. É boçal. Grosseiro. Mas se for uma das tias a escrever um desses palavrões, o caso muda de figura. Não é palavrão. É recurso estilístico. Não é obsceno. É light.
Já agora, e se está a pensar que a taluda lhe saia, quero dizer, se está à espera de ter a sorte - por uma qualquer ironia do destino - de sair na capa de uma dessas revistas só para gente chiquérrima e bué de fina, veja, primeiro, se se enquadra em algum destes três padrões:

Ser super bem... nascido/a (isto significa, no mínimo, que tenha tido um berço de ouro).

Ser super... rico/a (mesmo que use vestidos e jóias emprestados).

Ser super... brasa (bem, isto significa ser perito/a na arte de bem identificar os vários estilos de camas...)

Ainda dizem que a nossa tv não defende e divulga a cultura! O que eu aprendi com o conde, sim, o da quinta, corresponde a um mestrado subordinado ao tema - "A Arte de Bem Cavalgar Toda a Sela". Estou a referir-me, claro, à obra de D. Duarte. Não há palavras que exprimam a minha gratidão para com estas figuras simbólicas tão representativas do nosso país. É certinho, meus amigos, é tudo uma questão de genética. Um filho de um pobrezinho (o diminutivo é por estarmos no Natal!) será sempre um mal-educado, um brutamontes; um filho de príncipe, será sempre um cavalheiro. Querem um bom exemplo? Basta repararmos no que se passa no Mónaco ou em Inglaterra... só damas e cavalheiros.

Como disse, e bem, o senhor de Castelo Branco - aquele homem é uma fonte de sabedoria e… inspiração - as pessoas gostam de os ver nas revistas, na tv, ainda que numa quinta, pois necessitam de mitos. Precisam de sonhar. Precisam de poder pensar - eu também poderia ser "aquilo"!
Só esqueceu o sr. conde - marquês ou duque - um pequeno pormenor. Pode haver quem olhe para as vossas carinhas larocas, tão esticadas, mas tão esticadas que, quando riem, correm o risco de levantar uma perna; para os vossos modelos exclusivos, mas iguaizinhos aos de mais quatro tias, pelo menos; para os vossos pequenos "appartements" de 20 assoalhadas - coitadas das tias, o que elas têm de limpar - e mesmo assim, apesar de tantos benefícios e atributos, ainda haja quem pense - não queria ser igual "àquilo"... de maneira nenhuma!

Uma fã das tias e tios do nosso país!

AMS

domingo, dezembro 03, 2006

Feliz Aniversário, Inês!

As quatro estações rolaram e, novamente, chegou o dia do teu aniversário. Desta vez - já não és a minha menina, embora eu te veja sempre assim… - vais celebrar com amigos o dia da tua “independência”. Esta mãe careta cedeu, claro, mas com a condição de festejares primeiro com a família. É tão importante - um dia, dar-te-ás conta disso - não desatar laços. Tentei sempre preparar-te para o que há-de vir - momentos de extrema felicidade, momentos tépidos, momentos de enorme tristeza. A grandeza das pessoas - e a sua força - está em saber tirar proveito de todos esses momentos e nunca desistir. Nunca desistas!
Sei que, às vezes, pensas - e dizes - que sou uma grande chata. Mas, aqui para nós, tu não me ficas atrás. O ano passado - se pensas que esqueci, enganas-te redondamente - fizeste-me percorrer toda a cidade do Porto à procura da tua “prendinha”. Só que, ó nariz empinado, nem tu sabias bem o que querias - nessa idade quer-se o mundo - nem eu conseguia adivinhar ou identificar-me - palavras tuas - com os teus gostos. Resultado: uns quantos quilómetros bem percorridos, uma mãe cansada - com vontade de virar assassina compulsiva - e uma filha "cheia de razão", pensando que sou bruxa e, consequentemente, obrigada a adivinhar os seus caprichos. No final, tanto suor, tanta fadiga por causa de uns horrorosos óculos Calvin Klein. E por causa desses malfadados óculos de sol - na tua idade ( e não só...), a marca dá estilo - entrei e saí não sei quantas vezes em/de dezenas de lojas… até que o teu sorriso deu sinal verde.
Este ano, em abono da verdade, tudo foi mais fácil. Mudar de telemóvel era necessário. Até eu concordei. A minha presença serviu para pagar e ouvir, entre divertida e atónita, as mil e uma opções da maquineta. Não bastaria atender e ligar?! Sim, eu sei, não percebo nada de tecnologia avançada. Adiante.
Mas é por tudo isso - e apesar disso - que eu gosto tanto de ti. É verdade, somos, aparentemente, feitios incompatíveis. Sempre fui uma sonhadora incorrigível e desajustada. Tu és objectiva, precisa, matemática. Talvez por isso entremos, algumas vezes, em choque frontal. Sem feridas, sem cicatrizes, mas com alguns "ralhetes", amuos e um ou outro grito à mistura. Nada de grave. Nada que os laços que nos unem não apaguem. Aliás, vou confessar-te um segredo: é preferível ser como tu. Idealismo em demasia é carregar eternamente a doçura amarga do frágil e do incerto. Fico, assim, mais descansada. Também podes ficar sossegada num outro aspecto - aqui fica a promessa - nunca, mas nunca, cairei no erro de desejar que concretizes os sonhos que não pude realizar. Quero, tão-somente, que vivas a tua vida e que realizes os sonhos que a suportam... com o fogo das tuas emoções.
Contudo, nunca esqueças que, quando a vida que escolheres mostrar a sua face menos bonita - e acaba, mais cedo ou mais tarde, por mostrar - terás sempre em mim um colo acolhedor, compreensivo e ternurento para te acalmar as mágoas e incentivar a continuares a tua caminhada de dádivas e recusas, de aceitamentos e revoltas, de pertos e longes que nos habitam.
Hoje, basta-me que festejes o teu aniversário com a alegria e despreocupação que a tua idade requer.
Hoje, vejo-te uma quase mulher – desculpa, mas o "quase" não me deprime tanto - que, brevemente, estará pronta a ir com as aves, como escreveu Eugénio de Andrade. Mas eu estarei sempre aqui. Ainda que as aves regressem cheias de nostalgias e silêncios. E tu com elas.

Um beijo do tamanho do meu amor por ti.

Nota: Não escrevi um poema, visto que ainda ouço as tuas palavras – nem te atrevas, mãe. Nem te atrevas! Não me atrevi. Sabes porquê? Porque seria extremamente difícil encontrar palavras que se igualassem à riqueza plena de "mãe", "filha", "laços eternos".
Fica, porém, a intenção. Feliz Aniversário, Inês!


AMS

sábado, dezembro 02, 2006

A canja

Acordou de mau humor. Para ser cientificamente exacta, acordou de péssimo humor. Desconhecia a razão. Juraria que, durante o sono, tinha tido um daqueles sonhos cor-de-rosa. Doces como mel… Mas o que é certo é que estava, naquela manhã, de mal com o mundo. Como se pressentisse alguma desgraça. Sentia-se empanturrada de tristeza do tipo faca e alguidar e não via razão para tal. O céu não tinha caído. O asqueroso cão do não menos asqueroso vizinho continuava a ladrar, sinal de que o vizinho já tinha saído e não iria martelar as teclas do desafinado piano, durante horas a fio, com sonatinas mais ou menos patéticas. Aliás, reparava que a ciência também se engana. Se o estuporzinho do cão ladrava constantemente, em caso de terramoto - ou outra catástrofe - como iria o sarnento prevenir os humanos?! Pfff, balelas de cientistas… Mas, voltando à sua abjecta melancolia, que razões poderiam ter levado a que, naquela radiosa manhã, se sentisse bater no fundo? Os “jeans” continuavam a deslizar sem precisar de mirabolantes acrobacias para se meter lá dentro; os cremes anti-rugas estavam a fazer efeito sem precisar, ainda, de hibernar; o Joaquim Cortés mantinha o estatuto de solteiro; o dia de São Valentim já era… Em suma, nada, aparentemente, podia ser o factor número um daquele melodramático estado de espírito.
Tentou abrir as janelas da alma ao sol. Irra! As persianas desciam de imediato. Afinal, o que se passava com ela?

Trim… triiim… triiim…

-Sou eu?! Quem querias que fosse?
- Onde estou? ! - Cretino! Imbecil!
- Sim, sim…
- Não, não…
- Ai sim?!
- Por que motivo não podes vir ???
- Ah… bom… a tua prima está doente… sim… coitada… não conhece ninguém… claro… percebo… deve ser um sacrifício terrível… pois…
-É amorosa… - Que grande lata!
- Vais fazer-lhe uma canja?! Hã?... Visto assim, evidentemente… Se não pode sair da cama!...
- Sim, meu querido… compreendo… Não a deixes piorar… Desvela-te em carinho... Só um pormenor, amor da minha vida, também vais matar a galinha para a canja?!
ZÁS!
Ligação cortada. Desculpa, meu anjo, a estupidez paga-se!
Que foste fazer desgraçada?!!! A quem recorrer com um S.O.S? Calma. Mantém-te estóica. Respira… um… respira… dois… respira… três… M E R D A !
O imbecil não podia ter arranjado uma desculpa mais inteligente? Quem compra uma peta daquelas? Ciúmes? Não tinha ciúmes. Snifff…. Era apenas uma questão de... atropelo à sua inteligência.
Parecia uma personagem de Bretécher. Com ciúmes daquela prima em 8º grau?! Ela?! Deve ser uma ordinária. Não. Sejamos razoáveis. Ele é que é um ordinário. Mas a tal "prima" deve ser, no mínimo, grosseira, parva, inculta, sem canalizações no cérebro…

Trim…triiiim… triiiim…

- Se desliguei???… Não… a chamada caiu… Por quem me tomas? Detesto grosserias - Sacana, nojento, vira-latas!
- Se te amo? Se não acredito em ti?! A tua prima tem sessenta anos? - Desgraçado. Só faltava dizer que é do tempo do Luís XVI. Cada explicação tua tem o efeito boomerang… demostra sempre o teu carácter plastificado, Jack, o Estripador…
- Estou aqui, sim, bebé… Acredito, claro que acredito… Eu sei… nunca me mentiste… - És hilariante, meu estupor de meia-tijela. Um monumento vivo à idiotice, sabias?
- Se te amo? – respira … inspira… respira… inspira… Por momentos, pensou ter uma crise de apneia. Se vou amar-te para sempre? – Ufff… uffff… ufffffff… - Sim, sim, sim! Até que a morte nos separe! - E a tua está para breve. Vai rezando três Avé Marias…
- O quê?????????? Repete lá isso… Como se faz uma canja????????!
- É muito fácil, amorzinho. Atendendo a que a tua prima tem sessenta anos e, provavelmente, já usa dentadura, segue esta receita, meu doce: pões a água a ferver; cortas, esmagas, prensas o frango; polvilhas com arsénico e, de seguida, para dar aquele toque de finesse à sopa, regas com gasolina sem chumbo…
- Que se passa comigo? Se estou a gozar contigo? Nãaao! Adoro esse estilo de time-sharing, meu amor. É económico e… contenta toda a gente. Diverte-te com a canja e, se possível, compra uma galinha já reciclada.
ZÁS!

Trim… triiiiiiimm… triiiiiiimmm… triiiiiiiiiiiiimm... triiiiiiiiiiiiiimmm

[Sim, meu amor, amar-te-ei para sempre. No entretanto, vou ver se não volto a pensar em ti. É que… "para sempre" é muito tempo, não achas?]

AMS

sexta-feira, dezembro 01, 2006

Sejamos felizes

Sei que há uma não lógica intrínseca na vida que me fascina, atrai, desafia e que acaba sempre por me vencer – sem que, no entanto, eu me sinta derrotada.
A vida não pode resumir-se a “isto me basta!”. Isto não me basta! Sim, catalogar-me parece um trabalho fácil - insatisfeita. Inadaptada, dirão alguns, os "certinhos". Será apenas isso? Não! Tento reagir. Tento não ser mais uma na "manada". Tento não ir apenas porque os outros vão. Tento não me esquecer de viver, estando viva.
Por mais que me esforce, sei que não é fácil entenderem-me. Entender-me. Há tantos factores que nos limitam a capacidade de ver as coisas por si. Em si. Aliás, também eu não consigo perceber certas pessoas, certas atitudes. Mas não as ignoro. Nem as condeno. Só não as entendo.
Já tive a veleidade de acreditar que o homem é um ser naturalmente bom. Que, às vezes, descarrila. Feliz ou infelizmente perdi esse dom. Sei que a maldade vive connosco. Sei que basta muito pouco para que nos magoem. Para que magoemos os outros. Basta ignorarmos - por descuido ou intencionalmente - as consequências dos nossos gestos nos outros.
Não é saudável escamotear a sordidez do mundo. Das pessoas. Mas ficar parada ou escondida... não resulta. Há que saber viajar através dos nossos sentimentos com honestidade e com lucidez. Há que ser inteligente e procurar escapar a uma espécie de ingenuidade senil, doentia, e que usamos, frequentemente, como desculpa para determinados comportamentos. Convém saber misturar o riso e as lágrimas, razão e sentimento e - por que não? – ajustar contas com os nossos devaneios, responsabilizando-nos. É bom que saibamos aprender a viver corajosamente com as nossas cicatrizes - sem as esconder. Mundos, todos nós. Planetas que orbitam em redor de uma fonte básica de energia - o afecto.
Por outro lado, e é isso muitas vezes que me perturba, querem-nos por medida igual. Como produtos em série. Não aceitam que sejamos diferentes. Que a nossa alma - sim, porque todos temos uma - se recuse a andar entupida com o lixo das coisas acumuladas… que nos afogam como uma maré de fel.
A arte de bem viver consiste em tirar o maior bem do maior mal - a frase pertence a Machado de Assis. Atrevo-me a acrescentar : A arte de bem viver consiste em saber viver. Viver em paixão com alguém, com o mundo, com alguma coisa, mas, sobretudo, connosco.
Recordo certas palavras que li, algures - “Vê o que mais ninguém vê. Vê o que os outros preferem não ver por medo, conformismo. Vê o mundo de uma forma diferente todos os dias”.
Não estejamos aqui apenas para nos mantermos vivos. Na vida, há capítulos que, inevitavelmente, se fecham. Não adianta voltar a abri-los, pois a leitura seria sempre diferente. Que nos baste saber que já os lemos. Que há mais à espera de serem lidos. Que há mil e um abraços que cabem num só. Que a arte de bem viver é, afinal, reaprender, constantemente, a arte de ser feliz.
Sejamos felizes!

AMS