quarta-feira, dezembro 06, 2006

Lembranças...

Nunca me habituei à vida frenética, turbulenta, fechada da cidade. É como se, mesmo brilhando o sol, o céu continuasse friamente acinzentado, hostil, sem respostas. E, confesso, não gosto de circular no meio da multidão anónima, apressada, igualmente fria, cinzenta e indiferente. Assumo, definitivamente, o meu estatuto de mulher rural que não conseguirá jamais integrar-se neste círculo rígido que me dá sempre a sensação de uma selva cerrada e hostil. Adoro o campo. Suponho que as paisagens verdes e abertas marcaram para sempre a minha personalidade. Na cidade, tudo tem um ar desesperançado, de braços caídos ao longo do corpo; no campo, há, na paisagem e nas pessoas, qualquer coisa de mágico, de sonho, que impede que a realidade se insinue e nos torne amargos.
Revejo Britiande, a pequena vila que enquadra a minha infância. As crianças a brincarem no adro da igreja. No meio delas, uma, de longas tranças louras, parece-me familiar. Jogam "à corda" enquanto esperam pela hora da catequese. Com que nitidez todas estas imagens passam diante de mim: as casas pitorescas, a igreja, o cemitério, os rostos tisnados pelo sol dizendo sempre que passam por alguém - Santo dia! Qualquer coisa de infantil, mas natural. Revejo o serão passado junto à lareira. Quantos rostos amados que já partiram! Quanta saudade! E as histórias contadas aos mais pequenos?! E os lobisomens?! E o pobre coitado que "corria fado"?! E os tesouros enterrados à espera que uma palavra os fizesse aparecer diante dos mais audazes?! E o terço - que fastidioso e sonolento era! - que recitávamos como se fosse tabuada? E a menina das tranças que tinha medo do papão e que jogava à "cabra-cega"?! Velhos tempos impregnados da frescura do orvalho e de mil perfumes suavíssimos. Com que saudade os afago... O presente? O presente é a secura desgastante das coisas e das pessoas. Já não há serões de poesia junto à lareira. Apenas morrinha de brasas apagadas.

AMS