Portuguesmente pensando
A viagem ia ser uma seca! - pensou. Aquelas reuniões começavam a ter o estranho condão de a enervar e nem mesmo o facto de viajar de comboio - meio de transporte que sempre a fascinara - conseguia aliviar a tensão que tais culturais - e formativos (?) - eventos lhe provocavam.Entrou na carruagem. Escolheu um lugar junto da janela e sentou-se. Certificou-se de que não esquecera as revistas do costume, o jornal, o livro que andava a ler e, desencorajada, preparou-se para umas horas de tédio e de meditação.
- Este lugar está livre? Com licença… - ouviu, desinteressada, indagar uma voz de homem.
Abanou a cabeça e nem se deu ao trabalho de reparar na pessoa que se sentara ao seu lado. Olhava através da janela, acossada por nostalgias inexplicáveis. Se ao menos conseguisse adormecer… - embalou-a o pensamento.
- Dá-me licença de pegar no jornal? Entrei já um pouco atrasado e nem tive tempo de comprar um…
Passou-lhe o jornal. Só faltava este para me chatear ainda mais!
- Não pretendo aborrecê-la. Sei que é isso que está a pensar. Não, não sou adivinho. A sua cara falou por si. Mas tem razão. Não estou interessado em ler o jornal… por enquanto. Foi apenas o velho pretexto de entabular conversa. É ridículo, e um desperdício, passar estas horas a ler vezes sem conta o mesmo artigo quando posso estabelecer um diálogo interessante com o vizinho do lado. Bem, neste caso... uma vizinha…
Confusa e surpreendida pela honestidade - jogo? charme? - das palavras que acabara de ouvir, observou o seu interlocutor. Idade indefinida, sorriso irónico mas simpático, postura de quem sabe o que quer… Não, não tinha ar de psicopata. De certeza, porém, que iria revelar-se um Casanova fervoroso, pegajoso e desinteressante. Daqueles que tiram curso intensivo por fascículos sempre subordinados ao mesmo tema - A arte de bem engatar (enganar) as mulheres.
- Sossegue! Prometo que não vou assediá-la. Uma amena cavaqueira é tudo o que lhe peço. Uma forma agradável - tão-só - de encarar estas horas que temos pela frente.
Cada vez mais surpreendida - já com uma pontinha de curiosidade - sorriu . De acordo! - anuiu. Veremos quem será o primeiro a desistir da tertúlia agradável e interessante.
- Aviso-a de que sou um homem culto, inteligente e… modesto!
Ela deu uma gargalhada, deixando atónitos e horrorizados os outros ocupantes da carruagem. O ar reprovador com que a fustigaram incitava, desde logo, a imaginar o filme escabroso que já corria pelas suas mentes. Sentiu que aguçavam ainda mais os olhos e ouvidos para seguirem, minuciosamente, o itinerário daquela - segundo eles - aventura descarada, sem o mínimo recato e moral.
Aquele inesperado companheiro demonstrou ser, efectivamente, um homem assaz culto, interessante e de trato agradável. Um homem com sentido de conveniência, humor e naturalmente polido. Deste modo, o tempo tinha passado rápido, e as revistas e jornal continuavam à espera que leitores amigos lhes tocassem.
À medida que se aproximava o fim da viagem, um ambiente agradável - quase caloroso - tinha-se estabelecido entre os dois. Os comentários e risadas provenientes de diferentes pontos de vista pareciam ter provocado um azedume cada vez mais acentuado nos restantes “espectadores”. Era notório o ar acusatório dos que com eles viajavam. Reservavam-se o direito de delinear, a seu bel-prazer, o “cenário” que tinham imaginado desde o início, dando já como certo o único final que os seus espíritos mesquinhos conseguiam traçar.
- Foi um prazer, acredite. Esperemos que o destinos nos faça encontrar em próximas viagens... - disse ele.
- Agradeço-lhe a companhia. Foi, efectivamente, um prazer! - retribuiu, sincera, abstendo-se, porém, de tecer comentários às últimas palavras.
- Então… até um dia!
- Até um dia!
Olharam-se com a limpidez de quem sabe nada ter a censurar-se. Dirigiram-se para a porta de saída, acenaram um breve adeus e cada um seguiu a sua vida.
- Espere! Por favor, espere!
- Vai estragar tudo... - pensou ela. Ou vai perguntar o nome do hotel ou o número de telemóvel…
- Ainda a apanhei. Esqueceu-se das revistas e do livro. Vão fazer-lhe falta na viagem de retorno. A menos que encontre um homem tão culto, encantador, inteligente e modesto quanto eu.
Sorriram ambos. Ele entregou-lhe as revistas e o livro e retomou, decidido, o percurso inverso ao dela.
Enquanto se dirigia ao hotel, ainda sorrindo, divertida, para espanto do motorista do táxi, ia pensando - Homem de palavra! Culto, inteligente, simpático e… convencido. Não devo fazer mesmo o género dele… Nem a mais leve tentativa para saber quem sou…
E riu, abertamente, perante o olhar deleitado, mas simultaneamente desaprovador e moralista do motorista - Mulheres! O mundo está perdido! Se um tipo não se acautela… Olha-me p'ra esta a atirar-se a mim toda derretida…
Portuguesmente pensando…
AMS