nós e os outros
Quantas e quantas vezes, saindo do elevador, deparo-me com ela. Mulher quase anónima, insignificante aos seus olhos e aos dos outros, um simples, frio, distante rótulo a identifica - a senhora da limpeza.Balde, esfregona, postura curvada, resignada, olhar posto no chão, numa humildade digna, misto de mágoa e insegurança - eis os elementos que evidenciam aquela classificação por parte dos outros. Maldade? Nem tanto, embora certas pessoas, demonstrando um carácter ignóbil, mesquinho, carregado de frustrações, sintam um prazer mórbido em sufocar o seu semelhante.
Quantas e quantas vezes, limitando-me a um lacónico “bom-dia”, saio para a azáfama caótica do costume, evitando a esfregona, o balde, a mulher. E, no entanto, conheço a sua história. Quem não conhece?! Casara cedo. Engravidara várias vezes. Acostumara-se às migalhas de afecto, não reagindo, desculpando. Resignada. Como quem pede licença para existir. Como quem, à nascença, tivesse sido fadada para uma constante fuga à felicidade.
Depois, bem… depois veio o habitual desfecho. Outras mulheres. Outra mulher. Para trás, esquecida, ficara ela. Ficaram os filhos, a necessidade de os educar, alimentar, vestir, fazendo, simultaneamente, de pai e mãe.
Hoje, porém, a desculpa cómoda do “finge que não vês” foi quebrada. Desci, como habitualmente, até ao hall de entrada. Aparentemente, aguardava-me o mesmo cenário - a esfregona, o balde, a mulher. Afastei-me, ligeiramente, para não sujar o que ela já limpara. Quando me preparava para abrir a porta da rua, ouço:
- A filha da senhora está uma mulherzinha. Faz-me lembrar a minha Teresa. Devem ser quase da mesma idade. Os filhos dão-nos muitos cuidados, minha senhora, mas são a nossa alegria…
Parei. Surpreendida pelo inesperado das palavras, larguei a porta e virei-me para ela.
- Tem razão. Os filhos crescem depressa de mais… Então tem uma Teresa? Nunca a vi por aqui…
- Já a tenho trazido comigo, a senhora é que nem deve ter reparado. Ela ajuda-me, às vezes, quando estou adoentada ou tenho de me apressar para ir à escola dos mais novos… A senhora já a deve ter visto, mas... como anda sempre a correr…
Anda sempre a correr… Tens razão. Sem tempo para a tua história. Até sem tempo para a minha. Fixei-a melhor. Estava a “vê-la” pela primeira vez. Senti-me corar. Sempre a correr… Bom-dia! Boa-noite! É isto a que se resume o contacto com os outros. Por vezes, nem chega ao polido “bom-dia!...
- A senhora desculpe se estou a atrasá-la… mas queria perguntar-lhe… desculpe o meu atrevimento… se não teria uma roupita já velha da sua menina… A minha Teresa e ela… são quase da mesma idade… sabe… a vida está tão cara… Desculpe o meu atrevimento… já andava há uns tempos para lhe falar, mas... como a vejo sempre tão ocupada, sempre de um lado para o outro…
Ocupada?! Comodista. Cega. Ponto final. Sem tempo para reparar nos outros, para reparar em ti. Sem tempo para estender a mão. Mostrar um sorriso. Perdida na selva do trabalho, dos problemas existenciais, sociais, políticos… Esquecida da realidade que me cerca. Esquecida dos outros. Esquecida de mim.
- Não me incomodou nada. Fez muito bem em falar. Amanhã, trago-lhe a roupa. Até me faz um favor. Os adolescentes têm a mania de andar sempre com a mesma roupa, enquanto os roupeiros ficam sobrecarregados de excessos…
Excessos?! A balança nem sempre tem o mesmo peso nos dois pratos. Quando há peso a menos num dos pratos… o outro, forçosamente, fica lá em cima. Haverá, algum dia, uma balança com os pratos equilibrados?!
Sorri, disse um “até amanhã” culpado, envergonhado e saí.
São estes pequenos “encontros”, estas conversas reais - tão à margem das dissertações políticas e intelectuais - que nos fazem pensar.
Mas, na verdade, nada se explica fora de nós mesmos.
AMS