sábado, outubro 18, 2008

carta

Tenho demasiado sono para alimentar crenças. Das casas vou preferindo os cantos interiores,obsessivas sombras em que vou julgando. Se me acerco das janelas é apenas para ver o longe, as ténues linhas do azul inatingível. As portas, fechadas ou abertas, pouco valem. Desfaleceram com o desencanto dos caminhos. Vou ficando pela distracção de desejos mansos, sem guardar réstia de glória nem consolo. Assim, dou feriado à minha existência.

Sofro a fadiga das viagens que nunca ousei. Mas não me dedico nenhum desalento. Porque mantenho dos índios o preceito de envolver com panos os cascos dos cavalos guerreiros. Assim projecto a gravidez da terra. Fica a esperança: outros farão vencer as nossas pequenas razões. Saberemos então do seu tamanho, da sua pressa de ser cedo.

De tanto pensarmos fomos ficando sós. De amarmos o cerco dessa solidão. Que este cansaço sirva, ao menos, para não culparmos nada nem ninguém.

Fev. 1985 - Mia Couto

segunda-feira, outubro 13, 2008

Assim não sei viver

Li, algures, que, a partir de certa idade, somos todos ficção de nós mesmos. E, contudo, apraz-nos fazer passar a imagem de que continuamos a ser aquele/a que sempre fomos. Ingenuidade? Oportunismo? Não sei, mas, em todo o caso, convém não esquecer que, mais cedo ou mais tarde, haverá sempre um preço a pagar. Quanto mais não seja o da perda da dignidade que cada um de nós deve conter em si.
Não gosto de pessoas sonsas. Desprezo-as. Prefiro-me imperfeita e tresloucada a carecer de carácter. Os sonsos não têm carácter. Às vezes são, outras não. Depende das circunstâncias lhes serem ou não favoráveis.
Os sonsos não fazem História, mas tudo fazem para que o seu nome nela conste. Não dizem, insinuam. Não atacam, colocam ratoeiras. Não condenam à morte, pedem a toalha para limpar as mãos.
Num tempo de indigerível falta de honradez – tal o nosso – os sonsos reinam. Não porque neles não exista o conhecimento de que aquela deve prevalecer sobre tudo e todos. Apenas nunca se fazem notar através dela, nunca a deixam ver. Talvez porque acumularam, ao longo dos anos, carradas e carradas de coisa nenhuma.
A vida, para os sonsos, é a arte de sobreviver de forma sub-reptícia para não se comprometerem com nada nem com ninguém. Aliás, sonso digno de tal atributo nunca perde ainda que nunca ganhe. Quando é para escorregar, escorrega; quando é para correr, corre; quando é para declarar vitória, grita; quando é para assumir derrota, cala; enfim, nunca se define, vai-se definindo de acordo com regras mais ou menos subtis, mais ou menos híbridas.
De sonsos e sonsas estará o inferno cheio, mas sou capaz de apostar que o céu também. Até mesmo S. Pedro será capaz de confundir a arte de não ser com a arte de fingir que se é. No final de contas, acaba sempre por ser uma questão de perspectiva.
Assim não sei viver.

AMS

domingo, outubro 12, 2008

Saudade

Neste fim de tarde de estonteante silêncio,
a saudade acaba por se impor, como citação
absoluta, num local a que chamam coração.
Não arrasta consigo dúvidas ou remorsos,
muito menos lamentos, nem sequer o mais
ligeiro sobressalto. Ela é o tempo que promete
habitar a eternidade, a palavra plena que toca,
mansamente, o infinito, o gesto que se prolonga,
sem urgência ou fantasia, numa integral repetição.
Neste fim de tarde, sem brisas súbitas, macia
e divina, a saudade veio tomar chá, trazendo de
presente o regresso de uma história, num
ramo de flores de belíssima, inefável solidão.

AMS

sábado, outubro 11, 2008

Fotograma

Sei tão pouco de ti
que, no registo íntimo do meu coração,
apenas escrevi o rosto, o olhar, a voz.
Falta-me, nesse espaço marcado e desmarcado
pela luz do bem querer, o calor do sorriso
que se acerca e dos braços que se estendem.

AMS

domingo, outubro 05, 2008

Dia do Professor

Dia do Professor.
E, no entanto, um dia não afasta a desolação e o cansaço que encharcam a alma de tantos e tantos professores. As palavras são pouco para traduzir a desmotivação com que estão a esmagar-nos a dignidade e até mesmo o bem-querer. Todavia, o silêncio a ninguém vale. Assim, embora consciente de que o que escrevo não revela com rigor a intensidade do que, actualmente, sente um professor, há que fazer um esforço e, com carácter de urgência, desmascarar esta política de ensino - soturna, injusta e asfixiante - que não é senão a marca de um sistema economicista, tecnocrata e totalitário, que fala em excelência sem a ter e, o pior de tudo, sem realmente a promover. Muito pelo contrário.
Lembro, ainda, com comovida gratidão os nomes de alguns professores que marcaram para sempre a minha vida. Eram outros tempos - dirão alguns. Sim, é certo. Aulas centradas no professor, na memorização, na disciplina. Não me recordo, porém, de ter ficado traumatizada pelo facto de me terem ensinado a ser bem-educada e exigido estudo e trabalho. Eram outros tempos, claro. Os meus pais, recordo, nunca me permitiram “pôr em causa” o papel do professor, nunca apoiaram a minha preguiça - que, em abono da verdade, era q.b. - jamais aceitaram que eu faltasse a uma aula sem uma razão imperiosa e, acima de tudo, sempre me motivaram para a escrita e para a leitura. Se queres ser alguém - bom, aqui enganaram-se pois ser professor, em Portugal, é ser ninguém - se queres ser alguém, tens de trabalhar, estudar, tirar boas notas.
Era, pois, impensável ir para a Escola “fazer turismo” ou nela descarregar violência, faltas de educação, de empenho e de vontade de aprender.
Houve, certamente, coisas que melhoraram. O diálogo passou a ser um dos pilares do ensino. A classe docente deu-se conta da necessidade de uma formação contínua. A Escola modernizou-se: vieram os computadores, a Internet, os quadros interactivos e a febre das novas tecnologias. Veio, também, uma nova avaliação e com ela um clima de medo e de ansiedade, excesso de burocracia e hierarquização, muita subjectividade e, logicamente, falta de rigor e muita injustiça.
A maior parte da classe é a favor de uma avaliação formativa, valorativa, isenta, visando a reflexão, o envolvimento dos professores - humilhá-los, esmagá-los através de uma política de arrogância, prepotência e desprezo é uma táctica que só desqualifica quem a aplica - a cooperação entre pares, a melhoria dos resultados escolares, o sucesso escolar - mas não aquele que só se obtém por decreto e estatísticas psicadélicas.
A profissão de professor, hoje em dia, tende, manifestamente, a afogar-se em mil tarefas que nada mais fazem do que arrastar para um último plano a tarefa maior do docente - ensinar. Admirável política que diz mais sobre a índole de um governo do que um verdadeiro tratado de psicologia. Trágica cegueira tão lesiva ao futuro de um povo.
Podem os políticos e demagogos apregoar que os professores não contam: a História provará, eloquentemente, este erro, esta fraude. Os professores contam, meus senhores, quanto mais não seja para denunciar a mediocridade, a farsa e a destruição generalizada, obscena do ensino público.
Querem-nos sentados e entorpecidos. Resistamos. Há ainda um grão de luz na floresta negra.
Bom Dia do Professor.

AMS