sábado, outubro 18, 2008

carta

Tenho demasiado sono para alimentar crenças. Das casas vou preferindo os cantos interiores,obsessivas sombras em que vou julgando. Se me acerco das janelas é apenas para ver o longe, as ténues linhas do azul inatingível. As portas, fechadas ou abertas, pouco valem. Desfaleceram com o desencanto dos caminhos. Vou ficando pela distracção de desejos mansos, sem guardar réstia de glória nem consolo. Assim, dou feriado à minha existência.

Sofro a fadiga das viagens que nunca ousei. Mas não me dedico nenhum desalento. Porque mantenho dos índios o preceito de envolver com panos os cascos dos cavalos guerreiros. Assim projecto a gravidez da terra. Fica a esperança: outros farão vencer as nossas pequenas razões. Saberemos então do seu tamanho, da sua pressa de ser cedo.

De tanto pensarmos fomos ficando sós. De amarmos o cerco dessa solidão. Que este cansaço sirva, ao menos, para não culparmos nada nem ninguém.

Fev. 1985 - Mia Couto