"Como chamar-te se não possuis um nome?"
Porque eu sou do tamanho do que vejoE não do tamanho da minha altura
Alberto Caeiro
A vida prega-nos, frequentemente, surpresas. Agradáveis. Desagradáveis. Um jogo? Um teste? Talvez as duas coisas. Talvez nenhuma das duas. Afinal, será tudo um conjunto de nuances - há quem diga coincidências - que acabam por se resolver a elas próprias?!
No fundo, o que todos procuramos decifrar é o velho enigma da nossa caminhada. Como sobreviver a tortuosas veredas? Ao silêncio profundo e duro? A abismais verdades? A muros espessos de interrogações? Como alcançar a felicidade?
Ah, a miragem doce e ludibriosa da felicidade! Que acaba sempre por nos fintar. Que acaba sempre por nos encurralar em torres de nostalgias exigentes e acusadoras.
Desconfio que a resposta - ou respostas - está, pura e simplesmente, numa realidade singular - andamos todos distraídos. Ocupados. Empanturrados de futilidades. Passamos pela vida como uma espécie de zombies - embaciados, intoxicados, tontos, inconscientes, reduzindo tudo - até os outros, até os afectos que nos ligam a esses outros - à sua expressão mínima. Ou inexistente. Quando, acreditemos ou não, tudo é tão relativo e se traduz num assumir-se por inteiro na plenitude do que nos é dado viver.
Toda esta dissertação a propósito de quê? Tenho o mau hábito de me enrolar no novelo das ideias e acabo sempre por cair num discurso entedioso e, aparentemente, desconexo. A mim, o meu pai ensinou-me a observar. Não que eu seja uma espécie de inspector Maigret. Longe disso. O que ele tentou demonstrar-me é que quem é bonito por dentro não precisa de enfeites nem disfarces para cativar. Pode até estar na sombra, não saber fazer piruetas de vedetismo, não publicitar a sua existência e o seu mérito em panfletos fátuos e cintilantes - “O essencial é invisível aos olhos”! Porque, meus amigos, o nosso valor não depende do que apregoamos; depende do que somos e do que fazemos. Assim sendo, há que estar atento. Há que saber ver com o coração. Há que ter o condão de encontrar a tal felicidade nas coisas simples, submersas a olhos cegos.
E é aqui que começa a tua história, A-----. Tanta teoria, tanta treta… para chegar a ti. Quando, naquela quarta-feira, entraste na sala de estudo, nada nem ninguém faria prever que, por estranha coincidência - ou talvez não - algo ou alguém se preparava para cruzar os nossos caminhos. Recordo que, mal te vi, pensei – miúdo petulante! Vamos ter problemas! Oxalá seja a R------ a ficar com ele. Não estava destinado que assim fosse. Quase de imediato, entraram mais três alunos e a minha colega sentou-se junto deles. Dirigi-me a ti com a habitual folha-inquérito - alunos que vão para a sala de estudo estão, habitualmente, de “castigo”, porque foram postos fora da sala de aulas - e comecei o “interrogatório”. Nem uma vez olhaste para mim. Respondias quase por monossílabos e, ainda que não chegando à fronteira da má-educação, havia qualquer coisa de aridez provocatória na tua atitude. Quando te perguntei o nome do professor que te tinha enviado para a sala de estudo, ouvi, entre atónita e curiosa – Não sei. Nunca tive interesse em saber o nome dos profs. São-me completamente indiferentes.
Esqueci a folha-inquérito. Sentei-me. Olhei bem para ti. Catorze anos, pensei. Arrogante. Esquivo. Rebelde. Carente. E tão cheio de raiva. E tão cheio de medo. Observei a tua roupa preta – o preto é uma cor muito usada na vossa idade e, naquele momento, não percebi… - tentei captar a tua atenção, mas continuavas a recusar aceitar a minha presença. Era como se eu não existisse. Mas existia, A-----. E, por alguma estranha razão - ou não - decidi tentar perceber. Perceber-te.
Hoje, as pessoas não pensam. Dá trabalho. Queima energias. Ponto final. Mas eu, A-----, para mal dos teus pecados, ainda penso. Penso, dizem, de mais. E só faço ponto final, parágrafo, quando sinto que o melhor é “fechar a loja”, porque entrei/entrámos em falência de tempo e de afecto. E sou teimosa. E sou curiosa. E não sou tão má como rezam as crónicas. E sou muito "modesta"!
Quanto mais me repelias, mais eu me aproximava. Quanto mais te fechavas, mais vontade eu tinha de descobrir o peso que te atormentava. Era, acredita, mais forte do que eu. Pressenti uma mágoa tão resguardada, uma parede tão colossal entre ti e os outros, que se tornou quase obrigatório clarificar a razão pela qual parecia que arrastavas o peso de uma cruz demasiado grande para a tua idade. Foi uma luta de gigantes. Entre avanços e recuos, disseste, a certa altura - Não preciso de ninguém. Só preciso do meu pai.
Quase inconscientemente, rematei - E da tua mãe, suponho…
Perdoa a minha estupidez. Perdoa o não ter sabido compreender com o coração, como me foi ensinado, o acaso ou a não coincidência da tua chegada à minha vida.
A minha mãe morreu com cancro, no final das férias. - balbuciaste.
Uma parte de mim queria fugir dali. Outra, a mais sensata, fez o que o coração exigia. Esqueci a hierarquia professora/aluno. Esqueci o politicamente correcto, e contei-te alguns episódios da minha vida. Entre risos - só meus, porque me preveniste que só rias quando havia humor - e emoções, contei-te uma - várias? - história feita de instantes, feita de imagens passadas e desfocadas, feita de medos, de perdas, de aceitação. Feita de cumplicidade. Não era uma história de fadas, claro. Rapazes de 14 anos preferem outro tipo de relatos. Mas a minha narrativa, como por magia, prendeu-te a atenção. E olhaste para mim. E embora não chorasses - mais dia menos dia vais precisar desse alívio - os teus olhos estavam húmidos. Sombrios e molhados de lágrimas contidas.
A campainha tocou. Como noventa minutos passam céleres quando são ocupados pelo espaço de palavras que entram por todas as janelas e se repercutem nos corredores da alma!
Pegaste nos livros e ias, creio, sair sem um adeus. Eu sou teimosa, A-----, não subestimes os meus créditos, amigo! Olhei para ti - nunca mais esquecerei o teu rosto - e disse-te - O meu nome é A.R.. Podes decorá-lo?
Não! Nunca decoro nomes. Não me fazem falta. - voltaste a repetir.
Estás enganado, A-----. Ninguém pode viver isolado. Ninguém sobrevive sem a mão, a ajuda, a amizade, o amor dos outros. A menos que seja um robot. E até esses, A-----, precisam de manutenção. Chamo-me A.R.. Podes “guardar” o meu nome? - insisti.
Como é possível, pensei, um adolescente, ainda uma criança, poder suportar, sozinho, tanta raiva, tanta revolta, tanta disfarçada sede de “colo”?!
Está bem. Não volto a pedir. Não queres dizer o meu nome… não digas. Sou mais uma prof. da sala de estudo. Mas uma coisa podes anotar, o teu nome ficou comigo. E, aí, tu não podes fazer nada.Então, até um dia destes, A-----. - concluí.
Até um dia destes, professora A.R. - ouvi-te retribuir quase à socapa.
Nota: Nada do que foi escrito pertence ao reino da ficção. Nada foi deturpado. Apenas me abstive de narrar a totalidade da conversa que tive com o A-----.
O episódio não acabou aqui. Fui saber quem ele era. Constatei que apenas a directora de turma conhecia a história daquela vida, porque fora informada por familiares.
Não o voltei a ver. Não pretendo ter a veleidade de acreditar que mudei a existência de alguém. Mas aguardo.Todas as quartas-feiras, espero ver entrar, na sala de estudo, um adolescente vestido de preto.Tenho esperança que ele já não negue o meu nome. No entretanto, de vez em quando, mando-lhe um abraço pela minha colega. Há alguns dias, ela “entregou-me” um abraço do A-----.
AMS