sábado, novembro 11, 2006

Fogo-Fátuo

Volto a viajar no tempo. Recuo até uma pequena vila, Britiande, e sinto, como outrora, uma íntima doçura que me preenche de tranquilidade. É verão. Os dias são quentes, abafados. Mas não são imprecisos nem encalhados. São descoberta, brilho, magia. Nós somos muito jovens, ansiosas de vida e carregadas de sonhos. Duas adolescentes começando a vislumbrar o sabor caprichoso do amor. Que amor? O Amor. Estamos naquela idade em que se ama o Amor. Consigo ver, nitidamente, o rosto da minha prima. Esvoaça num universo maravilhoso, cheio de cenários que ainda são novidade e frescura convidativa. Está apaixonada e, ao mesmo tempo, temerosa da figura severa e pouco dada a “romantismos” do meu tio. A outra, fantasiosa, irreverente, tão dolorosamente ingénua e infantil, a outra… sou eu.
Aproximemo-nos. Tentemos, sorrateiramente, ouvir o que dizem.

- Ele vai estar, logo à noite, na Casa do Povo, tenho a certeza. O meu pai nunca nos deixará sair. Que podemos fazer?
- Lai, eu não peço… Acabo sempre castigada, com fama de ser eu a “desencaminhar-te” e… sem proveito nenhum.
- Mas tu costumas ter sempre ideias fantásticas. Pensa, pensa! Dou-te aquela saia que passas a vida a pedir-me emprestada. Se eu não for ao baile, a parvalhona da quinta da Várzea vai pescá-lo, aposto. E eu vou morrer de tristeza e tu de remorsos.
- Dás-me a saia? De certeza? Hum… Deixa-me pensar… A saia e a blusa azul. Senão… hã… não alinho. É muito perigoso e, além disso, é uma chatice ficar a jogar matrecos com o parvo do amigo dele enquanto tu vais namorar.
- És uma oportunista, uma chantagista, sabias?
- Não sou eu que quero ir à festa, sabias? E, pensando bem, o risco não vale a porcaria da blusa.
- A blusa é tua! Satisfeita? Como pensas escapar à vigilância do meu pai?
- Ora, é fácil. Eles deitam-se cedo, não é? Saímos quando estiverem a dormir.
- E os cães, espertinha?
- Eu não disse que saíamos pelo portão, burra. Saltamos da varanda para o terraço e do terraço para a garagem. Depois, é só pular para o carreiro junto ao muro, percebeste?
- Tu és maluca! Ainda nos aleijamos, o senhor teu tio acorda, descobre tudo e estamos desgraçadas.
- Engraçadinha! Para que servem as aulas de ginástica? E se tens medo… desiste. Não sou eu que quero ir até à vila…
- E o cemitério? Já pensaste? Temos de passar pelo cemitério… sozinhas…
- Pois… o cemitério… Dizem que a mulher do Toino da Campina aparece, à noite… Lai, e se ela nos aparece? Acho que preferia dar de caras com o teu pai, apesar de tudo.
- Tu não aprendeste tanto cântico religioso, no colégio? Fazemos assim: passamos a correr e tu cantas “O Senhor é meu salvador…”. De certeza que ela não se atreve a vir ter connosco.
- Cantar não estava no acordo. Quando formos a Lamego, pagas-me um gelado.
- Ainda dizem que tens alma de poeta, minha grande vigarista. Pronto, pago-te o gelado!

Estes périplos - sim, foram alguns - resultaram em pleno. Ninguém desconfiava. A mulher do Toino parecia ignorar as nossas aventuras. Os cânticos religiosos passaram a ter pequenas variantes e assumiram mesmo um estilo que - penso eu - viria a dar origem ao rap. A experiência criou duas mestras na arte de bem saltar, namorar e jogar matrecos. Infelizmente, tudo tem um fim. O nosso - e o das visitas à Casa do Povo - deveu-se a um incidente assaz curioso, mas que, na altura, nos deixou aterrorizadas e sem vontade de repetir as nossas gloriosas, bucólicas e nocturnas façanhas. Num desses sábados, já de retorno a casa, entusiasmadas e desprevenidas - quanto maior a facilidade, menor a atenção e os cuidados - olhámos, involuntariamente, para o lado do cemitério. Devo explicar-lhes que estávamos em pleno Agosto e o calor não abrandara com a chegada da noite. Subitamente, algo nos gelou o corpo e a alma. Faíscas azuladas saíam de uma ou outra campa. Era - veio-nos de rompante à memória - a mulher do Toino! Ia ajustar contas connosco - pensámos. Aos gritos, completamente horrorizadas, corremos, corremos, só parando no quarto. Se entrámos pelo portão, se o trepámos, ou se praticámos alpinismo através das paredes da garagem… não recordo. Recordo - isso sim - que, durante noites, duas almas penadas, imóveis, arregaladas, vigilantes - nós - se penitenciaram dos seus pecados fazendo não sei que bizarras , dolorosas, hilariantes promessas.
Aquele verão chegou ao fim. Voltámos à azáfama das aulas. Contudo, durante muito tempo, fomos cúmplices de um segredo que nos atormentou o sono em forma de pesadelos luminosos. Ambas sabíamos que aquele brilho, aquela luz que parecia dançar sobre as campas era, sem réstia de dúvidas, a mulher do Toino da Campina.
Quem duvidaria?!

Nota: Anos mais tarde, aquele filme de terror, aquele enigma que mais parecia um dos segredos de Fátima - tão bem o guardámos - passou a ter uma explicação. Dados cientifícos confirmavam tratar-se de um fenómeno assaz comum provocado por gás metano expelido de corpos em decomposição, e apelidado de fogo-fátuo.
Talvez…


AMS