sexta-feira, novembro 10, 2006

Ela

Enquanto a tarde passeava numa obliquidade entediosa, perguntou-lhe, de rompante, com uma centelha de ironia - "Mas, afinal, que queres tu da vida?!".
Olhou para ele. Sorriu. Talvez surpreendida pela banalidade da pergunta ou pela ratoeira, subtil e sarcástica, que a acompanhava. E se lhe respondesse - guardando o cinismo no bolso - que se contentava em passear, à beira-mar, sorvendo o céu alaranjado de um cair da tarde?! Que já não apreciava antecipar angústias!? Que começava a aprender a não ter pressa, a saber sentar-se à sombra da sua calma numa cumplicidade harmoniosa com o tempo!? Que estava farta das inconsequências da sua vida!? De ter desperdiçado a simplicidade e a ordem natural da existência humana. Dia após dia. Noite após noite. E que até mesmo os ideais - incrivelmente prosaicos, materialistas - de que ele tanto falava e que pareciam preencher, na plenitude, a sua vida - até a esses ela ia dar-se ao luxo de não os querer no seu percurso. Não tinha projectos. Não faria mais planos. Atirá-los-ia à sanita e descarregaria o autoclismo. Jogo perigoso? Talvez. Mas era interessante entregar as cartas ao destino ou ao simples e despreocupante - logo se vê! A sua vida fora, até ali, delineada, imatura, disparatada. Deixara de ter identidade própria. Sabia, agora, que a felicidade se encontra no afecto mútuo. Na vontade de eternizar tudo aquilo que vemos e sentimos. Ou no que não vemos… e sentimos também. Todos sonhamos, amamos, odiamos, rimos, choramos e… morremos.
Adivinhava o que ele estaria a pensar. Mas estava-se nas tintas para o seu paternalismo sensaborão, narcisista, demasiado previsível. Sim, conseguia adivinhar os pensamentos dele - "Esta mulher vai ter um final trágico". Ele fazia-a rir. Talvez por isso ainda não dera meia volta e lhe virara as costas. Não, não andava a ensaiar o seu suicídio com estricnina para o final do terceiro acto. Desapontado?! Acontece… De uma coisa estava certa, "começaria de novo" as vezes que fossem necessárias. Ninguém cresce vazio, por mais que, num olhar de fugida, se sinta assim. A diferença abissal entre as suas vidas era, afinal, uma questão de sensibilidade e de mais ou menos contornos transparentes. Ela acreditava que ainda podia salvar-se. Bastava deixar a vida cumprir-se, revelar-se. Ela ainda conseguia acreditar no que via e naquilo que não via. Ela ainda desenhava uma expectativa de ilusão. Uma trajectória - ainda que vacilante, temerosa - do que queria da vida. Porém, ele, o grande herói, aquele que se orgulhava de gerir bem as emoções - emoções? Coisas de loucos e poetas, segundo a sua opinião - sim, ele ficaria, irremediavelmente, cinzento e mirrado pela sua presunção. Pela sua universal ambição. Um ser perfeito, lúcido, lógico como um matemático. Com uma vidinha certinha, perfeitinha, programada ao milímetro.
Apetecia-lhe gritar - sabes o que penso quando olho para ti, para essa tua vidinha empanturrada de negócios, planos, contradições, incoerências, mundos paralelos, egotismo? É uma merda! Sim, ouviste bem, a tua vida é uma merda. Fica com ela. Não quero fazer parte dessa encenação. Acreditas ser um deus. Encenas com primor esse papel. Agrada-te a comparação? Não deites foguetes antes do tempo. Representas, sem parcimónia, esse papel. Deus. Tu és um deus. Mas um deus menor, daqueles que são feitos de cartão e verniz e que nunca entrarão no Olimpo.
Sou bizarra? Louca? Vá... não poupes esses insultos que tens tentado manter aprisionados há tanto tempo. Serei eu a louca?! Não és tu que achas que é necessário recuar ao Big Bang e repor a ordem do universo?! Todavia, enquanto tu te dedicas à árdua tarefa de tentar salvar o mundo do caos, da loucura, do excesso de sensibilidade e sentimentalismo, se não te importas, vou continuar a passear, à beira-mar, sorvendo o alaranjado do céu, dando livre arbítrio aos meus pensamentos, às minhas emoções, à minha vida. Respirando devagarinho. Sem sobressaltos. Admitindo uma felicidade simples, inocente, inefável. Deixando-te a monumental tarefa e o peso grandíloquo da milenária obsessão de procurar comandar o sentido da vida. Inexplicável. Inalcançável.
E a tarde espraiava-se, enfim, liberta de todo um leque de erros. Ansiosa, frágil, sensível, mas… sobrevivente.

AMS