"Depois de ter fechado tudo, abro de novo a porta..." - José Tolentino Mendonça
o pano desceunão há aplausos
apenas um súbito deserto
sulcado no ciciar célere da ilusão
como gesto gasto pelo tempo
sonho queimado pela vida
o espectáculo terminou
a farsa deu lugar à realidade
os actores retiram as máscaras
já não há palavras embebidas em éter
o silêncio silva como um chicote
rente aos lábios e ao coração
de rostos cerrados e parados
sem verdade e sem beleza
apenas um vulto quedou no palco
indiferente à mistificação do cenário
arrumando os papeis da vida
declamados por quem se limita a encenar
a evidência do fim em cantos de mil fogos
voos desordenados e entontecidos
na busca agonizante de um ser real e livre
o corpo pesa-lhe
o gesto é lento
a cabeça inclina-se para a frente
uma lágrima arrastada pelo desencanto
cai no sítio exacto
onde a vida e a morte se misturam
em liberdade definitiva
de repente
num desafiante frente a frente
com a sua grandeza e a sua pequenez
farto de uma existência sonâmbula
coloca num saco de viagem
a fuga aos homens repartidos e distantes
os sonhos maiores e os sonhos menores
a crença de que o território virgem do por haver
valerá mais do que a voragem do havido
apaga a luz e fecha a porta
AMS