quinta-feira, outubro 26, 2006

barco de papel

Pegou na folha de papel. Deu-lhe a forma de um barco.

Deu-lhe a ilusão de novas e perfeitas trajectórias. O clarão dos sonhos rente a uma desejada realidade. Noites onde o amor se afoga na febre dos corpos. Na textura das almas. Madrugadas sem charcos de sombra. E o simulacro de pousar no beiral da eternidade.

Deu-lhe medos. Minúsculas verdades. A angústia da posse fracassada. A incerteza cruzando-se com a tristeza nos semáforos dos dias. Um tempo que se infiltra de súbito silêncio. E a dor da mentira.

Tudo isto deu ao barco de papel . Apenas se esqueceu de lhe dar uma bússola de asas abertas com que o barco pudesse navegar virado para a vida.

Na oscilação volátil da luz, extenuado de espera suspensa sobre a dúvida, o frágil barco, ferido pela erosão do nada, deixou-se arrastar pela vertigem da corrente. E, tocado pelo gume das vagas, mergulhou, um a um, todos os seus sonhos, no fundo do mar. Em mil pedacinhos de papel translúcido.

Pegou na folha de papel. Deu-lhe a forma de um barco. Ancorou nele o desalento e o cansaço de um coração.

AMS