domingo, outubro 22, 2006

A Chuva, o Autocarro, o Telemóvel

Era um fim de tarde invernoso. O trânsito estava caótico. As pessoas fugiam ao fustigar da chuva e ao cinzento frio, duro, inóspito da cidade.
Molhada, irritada, farta de multidões na azáfama de compras e mais compras - era época natalícia – decidi apanhar o primeiro autocarro que aparecesse. Desejava chegar a casa o mais rapidamente possível, tentando, desse modo, escapar a uma gripe e ao consumismo da quadra que atravessávamos.
Caro leitor, já andou de autocarro, na cidade do Porto, em dias de chuva e - preste atenção! - épocas festivas?! Não?! Tem a certeza? Pois não sabe o que perdeu. Não sabe o que perde. É uma experiência inolvidável. O paraíso na terra. O teste supremo à nossa paciência. Enfim, a verdadeira antevisão do apocalipse. Dante, coitado, não teria precisado de descer aos Infernos. Ainda por cima, dizem as más-línguas, chamuscou o cabelo. Bastar-lhe-ia ter andado, por exemplo, no 6 ou no 20 - agora, penso, 203 - e teria, com toda a certeza, desistido de visitar o Céu pela mão da sua amada Beatriz. Mas deixemo-nos de divagações.

Não entrou Dante no 6. Entrei eu. A peregrinação ia começar. Por sorte, destino ou protecção divina, encontrei um lugar e pude gozar as delícias de tão prolongada e hilariante viagem… sentada. Deus, afinal, existe, ó incrédulos!
A chuva ameaçava transformar-se em dilúvio. O autocarro não saía do lugar. Os utentes protestavam. Era a suprema ventura!
Aos poucos, fomo-nos habituando à lentidão daquela marcha fúnebre. O ar estava irrespirável. Contudo, perante a tempestade que se fazia sentir no exterior, começámos, estóicos, resignados, a apreciar o ar quase acolhedor do interior do veículo. Conversas cruzadas. Futebol. Política. A conjugação do verbo comprar em todos os tempos e pessoas. E o autocarro, imóvel, na Rua do Rosário.

Cansada de limpar a janela, cansada de ver tanta água, comecei a reparar na paisagem humana que me rodeava. À minha frente, comodamente sentados, indiferentes ao temporal, dois operários da construção civil. Reparei no objecto que era alvo dos seus envaidecidos, orgulhosos olhares. Um telemóvel! Sim, naquele tempo em que os ditos cujos eram raros e faziam a delícia de quantos se atreviam a comprá-los. Um telemóvel!

Curiosa, comecei a prestar atenção à conversa. Em abono da verdade, o tom das duas vozes era tão alto que a ninguém passaria despercebido o teor do diálogo. Que diabo, sempre era uma maneira de passar o tempo!
- Liga prá tua mãe e pergunta-lhe se não quere ir tomare um pingo. Num demores. Essa maquineta ingole dinheiro.
O mais novo obedeceu à ordem. Marcou, aguardou, falou e passou o telefone ao pai.
- Tou? Oube lá, queres ir tomar um pingo ao café? Tá chovere? Que nobidade! Queres ou num queres? Prontos, espera por nós. Quê? Fala mais alto, mulhere, num t’oiço. Tá aí a Rosa? Quer falar co Quim? Prontos, vou passar-lhe o telefone.

E passou. Escusado será dizer-lhes que, por esta altura, todos os passageiros faziam conjecturas acerca da Rosa. Escusado será dizer-lhes que todos seguíamos, enlevados, aquela cena familiar.
O Quim falou. Falou. Falou. E falou. O amor é uma coisa maravilhosa. Até a chuva parecia ter diminuído. Só o autocarro continuava, persistente, na rua do Rosário.
- Oube lá, bê por quanto ficou a brincadeira? – indagou o prevenido pai.
O filho, depois de carregar em várias teclas, acabou por dizer quase a medo:
- Aqui marca seiscentos paus!
- Fo....... ! Car........! Mais balia termos bindo de táxi, carago! Tira-me essa merda dó pé de mim. Porra! Isso só passa a usar-se aos domingos, oubistes?!

E o autocarro continuava na rua do Rosário...

AMS