sábado, outubro 21, 2006

Apenas um ligeiro desconforto...

Acalme-se. Vá lá, isso são pieguices de mulher grávida. Não notei nada de especial no exame. Colo do útero fechado, não sangra… Já sei, vai voltar a repetir que essa dor na perna quase não a deixa andar. Já pensou que pode ser da coluna? O peso aumentou e as descalcificações são normais no seu estado. Nem sequer vejo necessidade de recorrer à ecografia, prova de que estou absolutamente convicto do que afirmo. Mais alguma dúvida?

Ela olhava para o médico, incrédula, assustada, atordoada, amarrada a emoções profundas, marcantes, não conseguindo dizer uma palavra que fosse. A certeza dele era a sua dúvida. Estúpido! Tu não vês que já não estou grávida?! Não sentes isso? Sim, é loucura. Esta barriga é real, existe, e, no entanto, como fazer-te entender que está vazia?! Como?! Tu és médico, a ciência está do teu lado. Mas nunca foste mãe. Não compreendes a diferença. Eu falava, ele entendia. Mexia-se. Eu falo, só sinto o silêncio, o nada. E este elo quebrado que não sei explicar-te. Entende-me! Não há nada cá dentro! Já não há nada...

Vou receitar-lhe um calmante e quero que descanse. O nervosismo está a prejudicá-la. Tem de pensar no bebé. Como já lhe repeti dezenas de vezes, não vejo qualquer sintoma que me leva a tomar outras medidas. Quero falar com os familiares que a acompanham. Fique tranquila. Isso é mimo!
Mimo?! Que estava aquele idiota a dizer-lhe? Mimo?! A dor na perna era cada vez mais insuportável e ele dizia-lhe que, por mimo, tinha dado entrada na urgência do hospital?!
Faça-me uma ecografia, doutor. Faça-a! Eu sei que algo não está bem. Não me pergunte porquê, mas sei. Chame o chefe de serviço, chame quem quiser, mas não saio daqui sem ter feito uma ecografia!
O desespero era tanto que não a deixava chorar. Queria gritar. Pedir ajuda. Rezar a esse Deus que dizem infinitamente bom. Porém, no fundo, já sabia que era inútil. Estava ligada ao irremediável. Como é difícil descrever o que nos corrói lentamente quando pressentimos que a ilusão do que se quis passa a ser, apenas, a nostalgia do que não se teve.
Por ser familiar de um colega, vou fazer o que me pede - resmungou, contrariado. Está a pôr em causa o meu profissionalismo? Não havia, não há necessidade. As grávidas viciam-se em ecografias. Acompanhe-me.

Os corredores enormes do hospital, a noite chuvosa e escura, a luz ludibriosa, apática e desnuda das lâmpadas, as figuras que lhe pareciam fantasmas arrastando-se lenta e resignadamente, enfim, todo aquele cenário lhe apertava ainda mais o coração e a arrastava, inexoravelmente, para o fim que já pressentia.
Dispa-se. Deite-se. Aguarde a chegada da enfermeira de serviço.
O frio cortante das palavras, a quase indiferença e a pressa de quem está com vontade de arrumar de vez com a situação, as paredes altas, nuas, brancas, parecendo aumentar a pressão que a esmagava, a dor que não passava, a certeza… a certeza… De súbito, a cabeça começou a andar à roda, a girar num espaço sem consciência, talvez a antecâmara entre a vida e a morte… Ainda ouviu uma voz distante que gritava - Enfermeira! Enfermeira! A paciente desmaiou. Chame o Dr…

Que susto nos pregou. Acorde… Está melhor? Essa tensão é que está muito alta. Vamos fazer-lhe a sonografia. Descontraia-se. Vai "ver" o seu bebé, está contente? É só o tempo de espalhar o gel na barriga… Pronto… O rapazote vai dar-nos um ar da sua graça. Bem zangado estará com a mãe que, esta noite, resolveu não o deixa dormir…
Ela fixou fundo as pupilas do médico mais velho. Nem se atrevia o olhar o monitor. Estava atenta à mínima reacção, ao mínimo sussurro, ao gesto mais contido. Por momentos, ainda esperou um milagre. O instante mágico da vida. Um instante… Eles é que tinham razão - era uma mimalha. Não havia motivo para alarme. A cara do médico estava mais pálida ou era impressão sua? Por que motivo não apanhava o bater do pequeno coração? Que o levava a olhar, estranhamente, para o colega? Falem! Falem! Digam que ele está bem. Suplico-lhes. Digam-me que o meu filho está bem!
O médico que a atendera, inicialmente, aproximou-se do seu superior. Começaram a dar-lhe pequenos murros na barriga… Observavam, atentamente, o monitor. Olhavam um para o outro. Não a fitavam, receando, talvez, a voragem do caos que a tomava.
Uma voz que não identificou como sendo sua, mas que saiu algures dela, sentenciou – Está morto. Está morto, não é verdade? O meu filho está morto.

Ouvia, ao longe, o arrastar de uma maca. Uma porta que se fechava. Ouvia o bater descompassado do ser coração. A dor, fina e acutilante, da perna passara - ou era ela que já nem a sentia. A dor que se agigantava no seu interior era avassaladora: rasgava, dilacerava a alma. Ninguém aguenta muito tempo isto - pensou. Talvez eu não resista também…
Lamentamos, acredite que lamentamos, mas o feto está desvitalizado. Já não pode sair daqui. Essa dor na perna é provocada por um começo de infecção. Vamos induzir o parto. Não vai ter dores, creia. Apenas um ligeiro desconforto. Vou mandar chamar os seus familiares… Não se culpe. Isto, infelizmente, acontece todos os dias.

Não respondeu. Olhou somente para o primeiro médico, detentora da certeza do irreversível. O que ele viu naquele olhar deve ter sido tão tragicamente humano, tão terrivelmente laminado de incompreensão que, cabisbaixo, preso à sua sapiência, à sua pequenez, saiu precipitadamente.
Iam evitar-lhe a dor. Sentiria apenas um ligeiro desconforto…




Quando pensamos fintar o destino e nos agarramos a bolinhas de sabão, é quando ele mais se recusa a acudir ao nosso apelo. Somos, todos, tão improváveis de nós mesmos. - Casimiro de Brito

AMS