sexta-feira, outubro 20, 2006

Era suposto escrever o amor

Era suposto escrever o amor. Uma ode transbordando felicidade. Vivências de exaltação sublime e envolvente. Silêncios que se tocassem num espaço de emoções e de afectos. Mãos que só existissem para tocar outras mãos. Conduzindo-as até ao fim.
Mas as ideias esquivam-se, recusam alinhar no trilho fácil da ilusão e são sugadas pela vertigem de uma acutilante, esmagadora realidade. Onde se sente perdida, atormentada com as suas imperfeições e insuficiências. Onde a lucidez é a coragem de clarificar que se é ou não se é. Amada. Que se tem ou não se tem. Amor.
Escreve. Tenta dar um rumo às palavras. Todavia, elas surgem intempestivamente. Indesmentíveis no que sentem. Virão do fundo mais recôndito da alma ou de um ponto indefinido que cobre os olhos de sombras? Enquanto se deixa embalar pela escrita, sente-se segura. O amor passa a ter muitas leituras. O que podemos prever não nos emociona, dizem... Queria poder evitar certos lugares-comuns, certos sentimentos, algum desencanto, algumas pessoas. Queria fechar os olhos, evitar certas lembranças que nos tornam tão vulneráveis, criar o vazio e, por escassos segundos, regressar a um estado total de ingenuidade confiante, inquebrável. Como se mergulhasse na grandeza maior de quem nos criou.
Às vezes, pesa-lhe a vida. Pesa-lhe a rotina em que se instalou, essa falsa coerência que não passa de um mergulhar nas águas emudecidas de trilhos sem sentido. Pesa-lhe o que sente e não diz. Pesa-lhe o que diz e não sente. Pesam-lhe os ponteiros da sua existência, avisando-a, ironicamente, de que sempre chega demasiado tarde. Ao encontro de si mesma. Ao encontro com os outros.
Não passará, afinal, o amor de uma sombra inquieta, fugidia, sublimação de miragens que não existem senão na nossa necessidade de não nos sentirmos abandonados no deserto que nos cerca?! Como se pode falar de amor sem marcas do desamor, sem gestos adivinhando solidão? Como se pode construir um amor do que não nos podem dar? Do que de nós já desistiu? Que mentiras teremos de consentir nos labirintos onde ele se esconde? Misterioso. Ambíguo. Indefinido. Incerto de si mesmo.
A folha de papel está cansada de interrogações. Farta de análises que a contaminam de contradições. Farta de palavras que se encontram, desencontram, cruzam, acercam, separam. Assim o amor.
Era suposto escrever o amor. Era suposto as palavras fluirem num cântico poético que modificasse os domínios do real, recriando um tear de emoções profundamente sentidas. Abraçadas umas às outras. Sem equívocos. Era suposto o amor não se perder nos labirintos obscuros do inquestionável. Era suposto poder escolher o caminho oposto à dor. Era suposto o amor ter asas, mas nunca fugir.
Só não era suposto que essa fraqueza, que nela já só grita renúncia, estranhamente, seja - ainda e sempre - a força que lhe alimenta a vida.

AMS