domingo, outubro 22, 2006

Entre a razão e o coração

A verdade mora em cada coração e devemos deixá-la guiar-nos tal como a vemos e sentimos. Porém, não temos o direito de forçar os outros a actuar segundo a nossa verdade.

Gandhi




Coexistência não é um princípio pacífico e, muito menos, óbvio. Apesar de ser uma necessidade vital. Hoje, creio, mais do que nunca, tal a distância que tende a separar-nos cada vez mais uns dos outros. Coexistência, assumamos, deveria ser sintonizarmo-nos por um conjunto vastíssimo de valores que passassem pelo respeito mútuo, pela aceitação da diferença, pela tolerância, pela ausência de julgamento e preconceito, numa clara convergência ética. Num mundo que parece virado do avesso, ouve-se, insistentemente, falar da importância de ter valores. Não dos que se transaccionam na Bolsa, mas dos outros, daqueles que estruturam a condição humana e que fazem com que a vida não nos saiba a absurda, por absurda que tanta coisa nos pareça. Claro que os valores, como tudo na vida, mudam. Mudam de época para época, de indivíduo para indivíduo. Mudam até em nós próprios, sujeitos que estamos a experiências e aprendizagens. Por isso é vital que cada um de nós possa acreditar em qualquer coisa. Qualquer coisa que estabeleça a diferença entre o que é fundamental e o que é acessório, insignificante. Qualquer coisa, enfim, que dê um sentido à nossa existência, recobrando transviadas esperanças.

Tenho a clara noção de que a história da humanidade nem sempre se rege pela autenticidade, pelo bom senso, pelo equilíbrio, pela interiorização de que é necessário um aperfeiçoamento contínuo e comum. Sei que nem sempre se sai vencedor face a determinadas subtilezas com que a vida faz questão de nos brindar. E como doem as bofetadas que ela nos dá! Coitados de todos nós! Por mais que nos esforcemos, ainda não conseguimos entender que a nossa existência depende, sobretudo, da nossa "presença" num mundo que é, cada vez mais, lugar de ausência.

Bondade gera bondade. Amor gera amor. Um inexplicável desprezo pelos outros - aliado a um delirante egotismo - gera mágoa, revolta, incompreensão, destruindo algo que se torna muito difícil de reparar. É evidente que podemos estar contra determinadas maneiras de viver, determinadas atitudes, determinados argumentos. Mas uma coisa é centrar a nossa raiva ou a nossa convicção nas ideias e outra, bem diferente, é centrá-las na pessoa. Contra a pessoa.
Precisamos de acreditar. Em nós, claro, mas também nos outros. Caso contrário, perdemo-nos e, quando olhamos à volta, não reconhecemos ninguém, não sabemos onde estamos nem para onde vamos, não encontramos referências fiavelmente seguras, deixamo-nos invadir pelo medo, por uma desestruturação que perturba e pode levar à destruição.

Comentava, há dias, numa conversa de café, que, infelizmente, tinha chegado a um estado de quase descrença no ser humano. Já tive a veleidade de acreditar que o homem é um ser naturalmente bom. Fui forçada a abandonar essa opinião. Sinto que a maldade vive connosco. E basta tão pouco para gerar conflitos, desassossegos, subversão total dos valores. É apenas necessário ignorar as consequências dos nossos actos nos outros. Que diferença há entre os gestos com maldade e a essência da própria maldade? Ironicamente, a única diferença é a desculpa que distingue as duas situações. Só isso. A desculpa é uma forma de esperarmos que quem acolheu a nossa falha, acolha, benevolentemente, a nossa culpa. E há pessoas que utilizam permanentemente esta dúbia estratégia - ofendo e depois peço desculpa. Donde, feitas as contas, chegamos sempre a uma posição comodamente conveniente. Somos todos boas pessoas. Às vezes, vítimas dos outros; às vezes, vítimas das circunstâncias. Os "maus da fita" existem, claro. Mas nunca somos nós.Como dizia uma das personagens do filme "Os Imortais" - "Por mais sacanas que sejamos, surpreendentemente, há sempre alguém mais sacana do que nós...". Pelos vistos, esta teoria conforta-nos, desculpabiliza-nos. Podemos dormir tranquilos ...

Sei que não sou perfeita. Longe disso. Sou limitada, insegura, vulnerável. Tenho dificuldade em aceitar os meus pontos fracos. Vou muitas vezes aos empurrões. Tenho a gravosa tendência de fomentar dentro de mim uma certa impulsividade agressiva, mesmo hostil. Todavia, estou plenamente convicta de que sou leal. Aos meus ideais. Aos meus amigos. Até, e por paradoxal que possa parecer, aos meus inimigos. Já me aconteceu estar a falar com alguém, olhos nos olhos, e pensar - por que motivo estás a tentar enganar-me? Não lês nos meus olhos que sei que estas a mentir? Que a minha boca cala, os meus lábios sorriem, mas que os meus olhos estão a tentar dizer-te que não sou a parva, a pacóvia que julgas ludibriar facilmente?! E continuo calada. E fico como que emparedada num misto de humilhação, decepção e mágoa. E continuo a sorrir…

O tempo começa a ser escasso para expressar tudo o que me confunde e me parece contraditório. Acredito num código ético. Daí o parecer estar constantemente em crise existencial. Comigo. Sobretudo comigo. Mas sei que existo. Isso eu sei. E que estou viva. Retrógrada. Vanguardista. Ingenuamente - tolamente - sonhadora. Tão dolorosamente racional. Mas viva!
Só para alguns - poucos - continuo transparente. Contudo, é nesses que me equilibro. É com esses que conto. São esses que me afastam do abismo do irreal, do não-vida, do vazio, do nada. Os momentos que não aproveitarmos ficarão, irremediavelmente, por aproveitar. Esta é a verdade. Mas a verdade não é um estado definível e imutável. A verdade está na cabeça de cada um. Todos somos, ao mesmo tempo, vítimas e responsáveis da nossa própria vida. Para o bem e para o mal, todos os caminhos do impossível estão abertos aos passos do real. O pior é que nem todos somos tão sábios que o compreendamos nem tão audazes que tracemos o nosso itinerário.
Agora preciso que me dês a tua mão. Não para que eu não tenha medo, mas para que tu não o tenhas. Amanhã, pela mesma razão, tu precisarás da minha. Só assim, estou convicta, descobriremos, com um olhar cheio de futuro, o encanto de caminhar sobre oceanos abertos.

Assim, tenho a sensação de que é preciso que alguma coisa aconteça. Não que eu seja apologista de cataclismos e "fins do mundo". Não. Supostamente, já tenho pessimismo q.b., não necessitando, portanto, de mergulhar em presságios horripilantes. Os que tenho... bastam-me. Mas tem de acontecer alguma coisa. Qualquer coisa que derrube os muros no coração dos homens; qualquer coisa que (n)os liberte de uma cegueira quase colectiva. Não estou, evidentemente, a referir-me a um castigo exterminador dos "maus" nem a um prémio que beatifique os "bons". Provavelmente, quase todos faríamos fileira nas duas categorias. Nem sequer falo de vingança. A vingança exige muito esforço e suor - que alguns nem sequer merecem - e talvez lágrimas e, ainda por cima, muita cobardia. Pode parecer estúpido e até simplista, mas a maior vingança, relativamente a certas pessoas e a determinados gestos, é, sem dúvida, ignorá-los. E ser feliz. Mudando a nossa percepção do mundo. Dos outros. De nós próprios. Porque "numa dimensão superior, a única coisa que existe é o amor."

AMS