sábado, outubro 21, 2006

Um comboio directo ao coração

Não percebia por que razão se encontrava ali há tanto tempo. Não compreendia ainda o grande puzzle que é a vida. Queria o pai, queria a mãe, e o seu pequeno coração reafirmava cruelmente - Eles foram-se embora e deixaram-te. Estás sozinha.
O irmão tentava consolá-la, os primos tentavam arrastá-la para as suas brincadeiras – Lu, anda jogar às escondidas! Não sejas piegas! És uma medricas! És uma mimalha! Tens medo do papão!
E ela olhava-os com a tremura e o receio de uma avezinha caída do ninho, mas lá ia atrás deles, enquanto murmurava - Não sou nada! Não sou nada! Só quero a minha mãe! Quero o meu pai! Mãe... Pai...
O afecto que os familiares lhe davam não chegava para atenuar o pavor de não voltar a recuperar as duas pessoas que definiam o seu mundo. A sua desorientação, a sua solidão aumentavam de dia para dia. Sentia-se desamparada, perdida, naquele enviesado labirinto - o quarto escuro onde se metiam os meninos travessos. Que “asneira” teria cometido para ser castigada daquela maneira? Sujara o vestido, descalçara-se - a mãe sempre lhe dizia que as meninas bonitas não se descalçam - correra atrás do “zarolho”, escondera o pão com marmelada dentro do canteiro de flores da tia... Era má! Sim, era má! Por isso os pais a tinham deixado com os tios. Já não a queriam…
E agarrava-se ao irmão, esfomeada de carinho e aconchego, chorando baixinho, despojada de qualquer certeza - Dói-me a barriga, Paulo. Dói-me muito a barriga. Quero ir para casa. Quando vamos para casa? É muito longe? Não me podes levar?
O irmão, quatro anos mais velho, tentava acalmar os seus receios e lá ia dizendo:
- São só três meses, Lu. Conta pelos dedos: um… dois… três… Quando chegares a este dedo, vês, este, o pai e a mãe vêm buscar-nos.
- Demora muito chegar a este dedo? Demora tanto como o Natal demora a chegar, Paulo?
- Em Outubro, eu já tenho escola e vamos embora. Mas, se choras, o tempo custa mais a passar. Vai brincar com a Lai, e eu não conto a ninguém que estavas outras vez a choramingar.
Como ela sonhava todas as noites com esse “Outubro”! Mas ele estava ainda a caminho - como costumava dizer a tia Bárbara. E contava pelos dedos como o irmão lhe ensinara. Mas a distância de um dedo ao outro enegrecia-lhe a alma e acabava sempre por lhe desenhar no coração a única verdade que percebia - os pais tinham-se esquecido dela.
Perdeu o apetite. Os tios começaram a ficar preocupados e, em surdina, comentavam:
- Está cada dia mais calada e franzinita. Quando os adultos não se entendem, as crianças é que pagam! Querem ver que a garota ainda vai adoecer com saudades?! É preciso pô-los ao corrente da situação. Não podemos arcar com o peso desta responsabilidade. E se acontece alguma coisa? Caem-nos em cima, porque não os avisámos.
Algumas horas mais tarde, a tia chamou-a :
- Lu, a tua mãe está ao telefone. Anda falar com ela. Corre, minha patarata.
Correu. Voou até ao escritório do tio, e só afastou aquele aperto que a aprisionava numa espécie de teia de aranha quando ouviu a voz da mãe:
- Vou buscar-te, claro que te vou buscar. Se já não gosto de ti? Tonta, gosto, gosto muito. Lu, a mãe e o pai tinham explicado que era melhor para ti e para o mano ficarem uns tempos com os tios e os primos, recordas? Para a semana vamos buscar-te, sossega.
- Sim, sim, sim… mãe!
- Tenho uma surpresa para ti, mas vais ter de ser uma menina muito boazinha.
- Mãe, eu quero ir embora, hoje. Mãe…
- Ouve, lembras-te de pedir um guarda-chuva igual ao da tia Nené? Pois já tens, aqui, o teu guarda-chuva. Pequenino, como tu, e todo às bolinhas. São só mais uns dias e voltam para casa. Não quero uma filhota chorona. Prometes? Porta-te bem, Lu, já és uma menina crescida. Pronto, não quero mais lágrimas, sim? Um beijinho da mãe e do pai. Vá, agora chama o Paulo. Porta-te bem, filha! Não aborreças os tios...
- Mãe! Mãe…
A lembrança do guarda-chuva às bolinhas fez, de imediato, sociedade com a vontade de ir embora, com a saudade que a minava constantemente e com a inconsciência própria das crianças daquela idade. Era fácil. Bastava ir até à estação e entrar no comboio. Um comboio que a levasse a casa. Ela já tinha andado uma vez de comboio e sabia que para o encontrar bastava ir ao local onde as mulheres vendiam aqueles rebuçados grandes, transparentes e muito doces.
Calçou as sandálias, esgueirou-se pelo portão e, confiante, meteu-se a caminho. Para ela havia um só caminho - o que a levava à estação. E, na estação, havia um só comboio. O que a levaria em direcção a casa, ao guarda-chuva das bolinhas e aos braços da mãe e do pai.

AMS