quarta-feira, outubro 25, 2006

Orgulho e Preconceito

“Nunca houve dia mais feliz para os sentimentos maternos de mrs. Bennet do que o casamento das duas filhas. Depois falava com orgulho de mrs. Darcy e visitava frequentemente mrs. Bingley.

(…)

Kitty, com grande vantagem para ela, passava a maior parte do tempo com as irmãs mais velhas e, frequentando um meio tão superior, melhorou.

(…)


Mary ficou em casa e, necessariamente, foi obrigada a abandonar um pouco os seus estudos para não deixar mrs. Bennet sozinha, mas como já não era humilhada com comparações com a beleza das irmãs, facilmente se adaptou à mudança.
Quanto a Wickham e Lydia, não mudaram com o casamento das irmãs. Ele resignava-se à ideia de que Elisabeth já sabia tudo quanto antes ignorava, mas, ao mesmo tempo, não perdia a esperança de que Darcy o auxiliasse.”


Orgulho e Preconceito
Jane Austen



Todos nós temos dias sim e dias não. A Eugénia, esta semana, esteve embrulhada em dias não. Tudo a irritava e, ainda por cima, torceu um pé. Tentei impingir-lhe a velha treta de que “há sempre um amanhã”. Em vão. Investir em campanhas contra o pessimismo não resultava. A voz dela ao telefone mais parecia a de uma moribunda a receber, piamente, a extrema-unção. Comecei a ficar intrigada. Até preocupada. Ela costuma meditar. Eu costumo delirar. Ela é determinada. Eu sou mais do género que precisa de um personal trainer do ego. Ela tem por lema - a liberdade é a coragem. Eu sou mais resignada a levar a cruz ao calvário, pregar a cruz no chão e, seraficamente, pregar-me a mim à cruz. Ela dança a vida ao som do jazz. Eu arrasto os pés numa dança indolente e fatalista. Ela é mulher para preparar um eficiente ataque Kamikaze. Eu prefiro suportar torturas zulus, porque sou indecisa, reflectida ou, simplesmente, demasiado tímida para me resolver a enfrentar… fantasmas.
Então, que se passava, afinal, com a minha amiga? Parecia-me psicologicamente anémica, cansada, pálida. Murcha! Cabia-me o papel de optimizar aquela tolerância zero à boa disposição. Se melhor o pensei…

Voilà. Eis-nos no Dolce Vita - a escolha do local foi imposição da sofredora diletante… - a caminho de mais uma versão do clássico “Orgulho e Preconceito”. O que uma historia romântica, uma mãe caricata e desesperada, uma protagonista arisca, um charmoso pedante e uma vontade enorme de exorcizar a tristeza não fazem! Confesso que, no início da sessão, ainda ouvi uns suspiros deprimidos e patéticos saírem das entranhas daquela "dama das camélias" sentada ao meu lado. Confesso que, irritada, ainda me apeteceu mandá-la tomar três Lexotans, assoar definitivamente o nariz e a alma, desligar a melancolia e viver - isto se não adormecesse antes - aquela saga de cinco irmãs com vontade - e que vontade - de arranjar marido.
Não foi preciso chegar a medidas tão extremas. A certa altura do filme - por acaso, e só por acaso, quando entra em cena o orgulhoso e preconceituoso Mr. Darcy - a minha amiga, impelida por algum génio bom - para o caso também é irrelevante - começa a sorrir e lá vai sussurrando - Preferia o actor da outra versão. Hum… mas este Mr. Darcy também não está mal de todo… Queira Deus que esta versão mantenha a cena do banho… Não percebi (?) bem aquela preocupação higiénica. Decididamente, a "Isolda" não estava nos seus melhores dias - pensei. Mas, olhando-a de soslaio, fiquei mais tranquila. A vontade de se suicidar com raticida estava a desaparecer. Um sorriso com a marca “correio do coração” e um brilhozinho nos olhos - as desgraças dão frutos inesperados - começavam a aflorar o rosto da "Ofélia". Havia, todavia, algo - alguém - que nos irmanava. Mr. Darcy, efectivamente, não estava nada mal.
Não estava, não. O amigo, o Bingley, esse, coitado, parecia um pouco atrofiado mental, é certo. O primo das cinco cinderelas, o Collins, além de pigmeu era um misto de abóbora do Halloween e Rosemary Baby. Mr. Darcy? Como descrevê-lo? Pois, Mr. Darcy… Sabem, dá mesmo vontade de escrever - O príncipe chega. Vê a princesa a dormir. Dá-lhe um beijo e… Sim, dá vontade de escrever que ainda há amores verdadeiros, despojados, intensos, triunfais. Ainda que orgulhosos e preconceituosos.

Poderia dar por encerrada a tarde. E a escrita. Aproveito apenas para esclarecer alguns leitores mais facilmente impressionáveis acerca da saúde da "Julieta" que me arrastou para o Dolce Vita - a Eugénia não estava atacada pela gripe das aves. No final, apresentava-se corada - até parecia que o Darcy se tinha declarado a ela - rejuvenescida e cheia de boas intenções. Arrastou-me literalmente para as lojas, obrigando-me a acordar o meu lado consumista. A isto se chama ingratidão. Há os orgulhosamente… sós. Insatisfeitos com a vida. Insatisfeitos com os outros. Satisfeitíssimos com eles. Há os preconceituosos que nos provocam alergias. E há as ingratas que, à força de admirarem orgulhosos preconceituosos, nos atiram, sem dó nem piedade, para os braços de um consumismo que nos flagela a bolsa. Vá lá perceber-se as amigas...
Porém, e para dar um tom moralista à história, acrescento que a tarde terminou na Bertrand. Começámos pelos romances, continuámos na ficção e terminámos na poesia. Saliento que mais uma vez pude apreciar uma certa instabilidade, neste caso, poética, na “bela acordada”. Ora pegava - e aqui é metaforicamente - no Joaquim Pessoa, ora folheava Al Berto, ora auscultava os sentires de Lorca.
Enfim, a tarde não foi - longe disso - uma chatice galáctica. O filme, se para mais não servisse, provou que se pode ser ambicioso e bondoso, inteligente e romântico. E suponho - aqui já sou eu a divagar - que a minha amiga percebeu que somos seres humanos, não somos santos. Que precisamos - todos - de leveza para descobrirmos uma migalhinha de sentido no meio de tanta confusão. E que não adianta substituir a coragem de viver pela cobardia de negar viver. Com ou sem um Mr. Darcy.

AMS