quarta-feira, novembro 01, 2006

A viagem

Era o tempo de arrumar gavetas, remexer memórias, afectos adormecidos pelo tempo. Sorver a poeira do que já foi, mas que, ainda que invisível, persiste. Como uma espécie de desejo realizado que comportasse o fim da solidão e do desencanto.
Folheou livros, releu cartas, viajou através de fotografias que marcaram, e ainda marcam, ciclos importantes da vida. Rendeu-se ao encanto de acreditar que ainda não era altura de dar um fim à história. Que ainda havia a possibilidade de ela se desenrolar sob a promessa de um céu sem nuvens.
Mas, estranhamente, tudo parecia reflectir a certeza da nossa efemeridade. Uma quase inevitabilidade exigindo, de certa forma, a nossa aquiescência.
Observou, atentamente, as fotos mais antigas, tentando fixar esse já inacessível instante, numa vã tentativa de prolongar a revisitação dos sentires para além do tempo.
O tempo, porém, ria-se, escorrendo-lhe pelos dedos. Lenta, inexoravelmente...
(Que poder tinham aqueles objectos que a transportavam a uma história já perdida, inelutável, como se, rendida, ela acabasse por se afeiçoar ao exílio da sua própria vida?!
Sempre uma ânsia dolorosa de tentar penetrar o segredo da ausência e do esquecimento. Sempre a recusa obstinada de erradicar a intrusa sensação volteando, ininterruptamente, da incerteza sem remédio do que virá. Sempre uma desalinhada (ir)realidade das nostalgias. Sempre o desejo universal de um final feliz.)
Arrumou, novamente, nas gavetas, aqueles desenraizados - tão perto e tão distantes - pedaços de vida. Ficou o vazio do cenário onde, outrora, tudo soou a encantamento, esplendor, emoção. Restou pouca coisa. Apenas gavetas fechadas. A falaciosa cumplicidade de um tempo irrecuperável. E o princípio e o fim dos dias a viver. Ainda a viver.

AMS