segunda-feira, outubro 30, 2006

Madame X

"Entre a verdade que dói um bocadinho e a imitação que distrai um pouco, faz-se da vida uma aventura errante."


Todos nós, de uma forma mais ou menos assumida, mais ou menos masoquista, mais ou menos hilariante, guardamos na memória - e no recôndito mais recôndito da alma - um filme. Um filme? Sim, um filme, ou antes, o filme. Aquela "fita" que marcou, definitiva, irreversivelmente, a nossa vida.
Podia enumerar uma lista infinita de razões que nos levam a sucumbir ao encanto de uma história que se molda em nós de uma forma hipnótica, ajustando-se ao nosso tempo reservado ao sonho. Tempo suspenso que redime e perdoa e seduz e espanta e sorri. Tempo que deixa a lua espreitar pelo rasgão da clarabóia do nosso imaginário.
Voltemos, porém, ao busílis da questão. Também eu, para o bem e para o mal, fui "tocada" por um ou outro filme… com uma magnitude equivalente ao grau 9 da escala de Richter. Uma questão de sensibilidade? Sem dúvida. Mas, sobretudo, um triunfo do coração numa versão "la vie en rose". Claro que o "rose" pode sempre desbotar e o nosso coraçãozinho, esvoaçando sobre o abismo - leia-se tragédia - depara-se, muitas vezes, não com o habitual "e foram felizes para sempre", mas com as águas negras, medonhas e gélidas que engoliram o Titanic e… o Di Caprio.
Filmes há - é uma constatação - que nos fazem soluçar convulsivamente, durante horas, mergulhados na mais abjecta dor, no desespero mais inglório. Quem resiste a uma Inês de Castro sem cabeça? A uma Anna Karenina que, louca de desespero pelo abandono do seu conde Vronsky, se lança, num acto lancinante, para debaixo do comboio? A uma mística e fervorosa Joana d’Arc toda chamuscadinha? À coragem de uma Cleópatra que, "poseuse" e sensual, coloca o braço dentro de um cesto para ser mordida por uma víbora nojenta, completamente alheia ao fogo da paixão - a víbora, entenda-se - ?! Isto, claro, para não falar da destemida Scarlett O’Hara na cena final em que Rhett Butler, indiferente à fragilidade da heroína, sai, deixando a porta aberta…; ou, ainda, da desgraçada Katharine Clifton - O Paciente Inglês - esperando, em vão, pelo sedutor e malogrado Lazlo Almasy… abandonada, esfomeada, cheia de frio, tão cheia de frio, coitada, que enregelou. Não, não há coração que aguente tanto melodrama, tanto sofrimento, tanta tragédia amorosa.

Que me recorde, fui (obrigada a ) ver o filme "Música no Coração"… seis vezes. Duas com a família - a minha mãe deve ter tido receio que uma única sessão não fosse suficiente para absorver músicas, diálogos, enredo… Enfim, as vicissitudes da família Von Trapp, lição de comovente amor e patriotismo; quatro vezes - sim, escrevi quatro - com a tia Eduarda, professora de música, solteirona militante, santa alma, preconceituosa q.b. - mulher sozinha num cinema? Nunca! Assim, e como era eu a sobrinha "mais à mão", lá acompanhava a virtuosa senhora ao cinema, proporcionando-lhe, deste modo, um êxtase pleno. Suponho - e aqui "fala" a minha imaginação - que a minha tia, durante o tempo que durava aquela saga musical, se colocava no papel da preceptora Maria e, num passe de magia, se via saltitando por vales e mais vales, sempre rodeada de sete "canários" esfomeados de carinho.
No final da sessão, tia e sobrinha comentavam o filme. Bem, ela tentava disfarçar o efeito devastador do choro; eu tentava mitigar a sua emoção… entre risos e o respeito que o romantismo da doce criatura exigia. Com efeito, a boa senhora, olhos avermelhados de tanta lágrima, nariz a condizer de tanto fungar, lenço amarrotado de tanto o apertar, entre lágrimas e sorrisos de ventura suprema - afinal, o capitão tinha salvo a sua amada e os sete cachopos das mãos dos nazis - rematava sempre com a habitual frase - Gostaste, Ana? Percebeste tudo, filha? Aquelas freirinhas eram umas santas… Sabias que estive para entrar no convento, mas… blá, blá, blá… Santa tia Eduarda! Nunca se apercebeu que a ânsia e o nervosismo que me denunciavam nada tinham a ver com a doce Maria, o capitão e as freiras. Eram, confesso, fruto da minha enorme vontade de entrar na pastelaria o mais depressa possível. O prémio, o meu prémio consistia - daí a minha disponibilidade "cinematográfica" - na total liberdade de, no final, me empanturrar de bolos e outras iguarias afins. Sim, que, na altura, ainda não havia o MacDonald’s!

Outro dos filmes que deixou eco na minha vida graças à densa emotividade da minha mãe foi - Madame X. Na altura, o cinema do Terço passava os "clássicos dos clássicos", dedicando-lhes uma semana que só não era santa, porque, raramente, coincidia com a Quaresma. Contudo, os sacrifícios que alguns desses filmes me custaram, valeram, e não creio estar a exagerar, por não sei quantos "Ramadão". Se a memória não me atraiçoa, fui "convidada" a ver a malograda madame morrer, pelo menos - e continuo a não exagerar - umas três vezes. A minha mãe, essa, coitada, mal se sentava no lugar indicado no bilhete, tirava um lenço da carteira - os lenços ainda não eram de papel, muito menos as carteiras - aguardando, ansiosa, que as luzes se apagassem. O que se passava depois? Suspiros. Muitos suspiros. Lágrimas teimosas. Mais suspiros.
Eu, sentindo-me numa espécie de velório, mexia-me, remexia-me, olhava para a cara acabrunhada da vizinha da direita, ouvia os ais da fila da frente, olhava para o écran e, em desespero de causa, pedia um milagre - Deus, permite que o realizador mude o guião. Tem pena da minha mãe. Tem pena de mim. Tem pena da desgraçada que acaba sempre por morrer durante o julgamento.
É evidente que Deus estava sempre ocupado com outros milagres bem mais relevantes do que aquele. Resultado: a habitual reprimenda de uma mãe chorosa e incapaz de perceber a frieza da filha perante um drama tão intenso - Porta-te como uma senhora. Já viste o que a pobrezinha está a passar ?! Teria sido inútil explicar-lhe que tudo aquilo não passava de mera ficção. A minha mão só não vestia de luto, nos dias seguintes, porque, como é óbvio, a dor ia resvalando para um riacho de melancolia. E, finalmente, a melancolia dava lugar à lucidez.
À distância - mas ainda sorrindo - revivo a sua tristeza e ouço-me a dizer-lhe, baixinho - Não chore, mãe. Pode ser que, hoje, ela não morra. Quem sabe se não é a sogra que vai ter um ataque súbito de coração?!

Ó mãe, perdoa a minha indiferença. A minha total incapacidade de compreender - em sentida cumplicidade - a tua reacção, a tua palidez, o teu exacerbado sentimentalismo. Juro-te que, se um dia conseguir apanhar a história da tal madame, vou concentrar-me, sublimando as minhas emoções, e vivenciar aquele drama doméstico predestinado à desgraça... por culpa de uma sogra má.
Sem pipocas. Sem Coca-Cola. Sem forretice de lágrimas. Só com lenços de papel!

AMS