segunda-feira, outubro 30, 2006

Barcos à deriva

"Assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração." - (Al Berto, Uma Existência de Papel)



Marulhar humano de um café. O vaivém constante dos que entram e saem. Simbiose multifacetada de ruídos e reflexos. A aparência da vida. Diálogos planando sem bilhete de identidade. Pessoas que conversam, riem, estudam, lêem. Cigarros esquecidos. Olhos vagos a trespassar espirais caprichosas, insondáveis. Horas repetidas. Horas vazias. Dias… meses… anos… A vida que passa.

A mulher - uma qualquer mulher – observa os imensos disfarces que a rodeiam. Disfarces que tentam ocultar a mesma irremediável solidão. Olha em volta e ao mesmo tempo para longe, deambulando o pensamento pelas formas circulares das mesas de vidro. Estava ali. Mas não era dali. Aliás, frequentemente, sentia que não era de lugar nenhum. Não haveria um lugar sem morte diária? Sem o frio contacto de pessoas que se limitavam a dizer-lhe – A tua cara não me é estranha. Viam-na. Não a conheciam, porém.

Continuou a olhar em volta, numa tentativa de afastar de si certos pensamentos, incómodas lembranças. Foi então que reparou no homem. Um qualquer homem. Bebia uma cerveja. Em cima da mesa, três garrafas vazias e um cinzeiro cheio de filtros brancos focavam, nitidamente, os meandros de uma vida. Ele mantinha os cotovelos pousados no bordo da mesa e a cabeça apoiada sobre uma das mãos. De vez em quando, bebia um gole de cerveja e aspirava, sofregamente, o cigarro.
Talvez pelo facto de se sentir observado, exposto, ou por qualquer outra razão, levantou o braço para o empregado, pediu a conta com um pouco perceptível gesto dos lábios, esmagou o cigarro contra o alumínio oxidado do cinzeiro e bebeu, de um só trago, o conteúdo do copo.

Ela desviou o olhar. Não percebia por que razão gestos tão comuns se lhe afiguraram patéticos. Bloqueados. Dramaticamente fechados, sofridos. Aprisionados numa teia, num buraco negro. E sentiu um nó na garganta. Um nó que apertava, esganava.

O homem saiu, com a cabeça baixa e quieta, sem olhar para ela. Evitando-a – pareceu-lhe. Nunca chegando a saber que, naqueles breves minutos em que ela o “adivinhara”, não fora apenas o “outro”. Porque ela também era o “outro”. Todos nós, para os outros, somos apenas o “outro”. Todavia, todos nós esbracejamos no mesmo mar. Como barcos à deriva. Quase sempre sem nos tocarmos.

AMS


“…mas estamos sempre sós… de resto somos assim… sós… e isso não tem remédio… nunca…”