sábado, dezembro 02, 2006

A canja

Acordou de mau humor. Para ser cientificamente exacta, acordou de péssimo humor. Desconhecia a razão. Juraria que, durante o sono, tinha tido um daqueles sonhos cor-de-rosa. Doces como mel… Mas o que é certo é que estava, naquela manhã, de mal com o mundo. Como se pressentisse alguma desgraça. Sentia-se empanturrada de tristeza do tipo faca e alguidar e não via razão para tal. O céu não tinha caído. O asqueroso cão do não menos asqueroso vizinho continuava a ladrar, sinal de que o vizinho já tinha saído e não iria martelar as teclas do desafinado piano, durante horas a fio, com sonatinas mais ou menos patéticas. Aliás, reparava que a ciência também se engana. Se o estuporzinho do cão ladrava constantemente, em caso de terramoto - ou outra catástrofe - como iria o sarnento prevenir os humanos?! Pfff, balelas de cientistas… Mas, voltando à sua abjecta melancolia, que razões poderiam ter levado a que, naquela radiosa manhã, se sentisse bater no fundo? Os “jeans” continuavam a deslizar sem precisar de mirabolantes acrobacias para se meter lá dentro; os cremes anti-rugas estavam a fazer efeito sem precisar, ainda, de hibernar; o Joaquim Cortés mantinha o estatuto de solteiro; o dia de São Valentim já era… Em suma, nada, aparentemente, podia ser o factor número um daquele melodramático estado de espírito.
Tentou abrir as janelas da alma ao sol. Irra! As persianas desciam de imediato. Afinal, o que se passava com ela?

Trim… triiim… triiim…

-Sou eu?! Quem querias que fosse?
- Onde estou? ! - Cretino! Imbecil!
- Sim, sim…
- Não, não…
- Ai sim?!
- Por que motivo não podes vir ???
- Ah… bom… a tua prima está doente… sim… coitada… não conhece ninguém… claro… percebo… deve ser um sacrifício terrível… pois…
-É amorosa… - Que grande lata!
- Vais fazer-lhe uma canja?! Hã?... Visto assim, evidentemente… Se não pode sair da cama!...
- Sim, meu querido… compreendo… Não a deixes piorar… Desvela-te em carinho... Só um pormenor, amor da minha vida, também vais matar a galinha para a canja?!
ZÁS!
Ligação cortada. Desculpa, meu anjo, a estupidez paga-se!
Que foste fazer desgraçada?!!! A quem recorrer com um S.O.S? Calma. Mantém-te estóica. Respira… um… respira… dois… respira… três… M E R D A !
O imbecil não podia ter arranjado uma desculpa mais inteligente? Quem compra uma peta daquelas? Ciúmes? Não tinha ciúmes. Snifff…. Era apenas uma questão de... atropelo à sua inteligência.
Parecia uma personagem de Bretécher. Com ciúmes daquela prima em 8º grau?! Ela?! Deve ser uma ordinária. Não. Sejamos razoáveis. Ele é que é um ordinário. Mas a tal "prima" deve ser, no mínimo, grosseira, parva, inculta, sem canalizações no cérebro…

Trim…triiiim… triiiim…

- Se desliguei???… Não… a chamada caiu… Por quem me tomas? Detesto grosserias - Sacana, nojento, vira-latas!
- Se te amo? Se não acredito em ti?! A tua prima tem sessenta anos? - Desgraçado. Só faltava dizer que é do tempo do Luís XVI. Cada explicação tua tem o efeito boomerang… demostra sempre o teu carácter plastificado, Jack, o Estripador…
- Estou aqui, sim, bebé… Acredito, claro que acredito… Eu sei… nunca me mentiste… - És hilariante, meu estupor de meia-tijela. Um monumento vivo à idiotice, sabias?
- Se te amo? – respira … inspira… respira… inspira… Por momentos, pensou ter uma crise de apneia. Se vou amar-te para sempre? – Ufff… uffff… ufffffff… - Sim, sim, sim! Até que a morte nos separe! - E a tua está para breve. Vai rezando três Avé Marias…
- O quê?????????? Repete lá isso… Como se faz uma canja????????!
- É muito fácil, amorzinho. Atendendo a que a tua prima tem sessenta anos e, provavelmente, já usa dentadura, segue esta receita, meu doce: pões a água a ferver; cortas, esmagas, prensas o frango; polvilhas com arsénico e, de seguida, para dar aquele toque de finesse à sopa, regas com gasolina sem chumbo…
- Que se passa comigo? Se estou a gozar contigo? Nãaao! Adoro esse estilo de time-sharing, meu amor. É económico e… contenta toda a gente. Diverte-te com a canja e, se possível, compra uma galinha já reciclada.
ZÁS!

Trim… triiiiiiimm… triiiiiiimmm… triiiiiiiiiiiiimm... triiiiiiiiiiiiiimmm

[Sim, meu amor, amar-te-ei para sempre. No entretanto, vou ver se não volto a pensar em ti. É que… "para sempre" é muito tempo, não achas?]

AMS