quinta-feira, dezembro 28, 2006

Um conto de Natal

O que vou contar aconteceu há muitos, muitos anos, numa pequena aldeia perdida entre rochas e penhascos, tão deserdada de tudo como os seus poucos habitantes. Gente humilde, simples, habituada à dureza escarpada da vida. No verão, corpos e rostos magoados pelo calor do sol em brasa, escurecidos de pó, aguilhados pelo destino de ter de labutar pelo pão com o seu suor; no inverno, gelados, petrificados num estertor de agonia e resignação. Naquele lugarejo escondido, perdido entre fragas e penedias, havia fome de quase tudo. Não chegavam notícias, não havia médicos e até a avidez dos políticos, com as suas promessas inúteis, cheias de nada , parecia ignorar aquele grupo de pessoas afastadas do resto do mundo. Apenas numa noite, numa única noite do ano, a pequena aldeia cintilava de sonho, encantamento e brilho de estrelas.Com efeito, todos os anos, na noite de 24 de Dezembro, como por magia ou sei lá que mística explicação, aquelas vidas ultrapassavam a dura realidade do quotidiano, a miséria dos que nada pedem, julgando nada ter a pedir e, longe das convenções teatrais da época natalícia, dos gestos apressados e acessórios, repetidos, mecanicamente, uma única vez no ano, longe dos pinheiros e abraços de plástico, das luzes e palavras artificiais, enfim, longe da mesquinhez e miséria humanas, aquele pequeno enxame dirigia-se, solene e alegremente à pequena capela, tosca e fria, para, aí, partilharem a fé, a simbologia e a beleza daquela noite especial.É natural, dirão alguns! Tratava-se de um meio rural, logo, primitivamente religioso. Sim, dirão os cépticos e descrentes - é natural! O que não é tão natural, aquilo que foge aos cânones rígidos e espartilhados do homem "civilizado" é que, numa dessas noites de Natal, quase afagando a eternidade, algo de extraordinário veio quebrar a quietude morna e aconchegante daquela gente simples. Quando, na pequena e rústica capela, perto da meia-noite, as orações e os cânticos se elevavam ao céu, contam os filhos dos filhos dos que lá estavam que, num milagre prodigioso - miragem colectiva, continuarão a afirmar os mais cépticos - uma estrela encheu de brilho e esplendor o recinto de pedra da pequena capela. Que aconteceu depois? Os relatos perdem-se nas teias do tempo... Sei, apenas, que aquelas pessoas habituadas ao silêncio martirizado de criaturas vivas e prisioneiras da indiferença e incúria de outras criaturas menos vivas e mais miseráveis, foram, talvez por isso mesmo, escolhidas para protagonizarem aquela história antiga que falava de uma estrela, de pobreza e de um rei universal. Sei, também, que aquela pequena e oculta aldeia, desnuda de preconceitos, vaidades e egoísmos, despiu-se, naquela noite, de cardos e cobriu-se de bençãos.

AMS