O Presente
Acordou cedo. Por qualquer circunstância que não conseguia recordar, despertara, súbita e nitidamente, pela mão estridente do silêncio, despida de inquietações, é certo, mas ausente da decisão de caminhar ao encontro do dia que começava. Talvez o silêncio, talvez aquela estranha sensação de poder viajar, como por osmose, para o interior de si - ou para qualquer outro lugar - fizessem com que sentisse que tudo é, realmente, uma questão de perspectiva.Ontem, por exemplo, sentira-se extremamente desamparada, abatida. Inicialmente, tentara associar-se à alegria borbulhante dos outros.Todavia, revelara uma total falta de jeito para se mostrar divertida, encantada, disponível. Crispavam-se o sorriso, a alma. Não queria limitar fronteiras. Porém, quanto mais a boa disposição se agigantava, durante o jantar, mais ela se esquivava numa órbita diferente, em direcções diferentes, opostas até. Uma maneira estúpida de gerir lembranças doídas, numa noite especial. Sim, aquela noite era diferente. Uma espécie de aconchego para o espírito. E por isso, tolamente, tentara combatê-la. Combater-se. Há certos "fantasmas" que, nessa data, parecem ensombrar mais a vida, tentando ofuscar a claridade, toldando os sentidos. Não deixando perceber que é preciso recomeçar a viagem - as vezes que forem necessárias - com uma esperança inabalável. Sempre.
Não deixava de ter piada. Por um lado, embora não estivesse feliz, queria parecê-lo. Esforçava-se por parecê-lo; por outro, detestava-se por ser incapaz de decidir, com exactidão, o papel a desempenhar. Havia falta de unidade na sua encenação. Ao tentarmos ser várias pessoas, corremos o risco de ser… ninguém.
Raios! Por que maldita sina, hoje, acordara tão cedo e tão lúcida? Logo hoje!
Fechou os olhos. Tentou recuperar o sono perdido. Em vão. Desistia!
Levantou-se, enfiou os chinelos e foi sentar-se, no sofá da sala. Alguém deixara as luzes do pinheiro de natal acesas. A filha resolvera decorar a árvore apenas em dois tons: vermelho e dourado. Olhou atentamente - talvez pela “primeira” vez - a decoração cintilante da árvore. Estava bonita! - tinha de admitir. No chão, ficara um presente esquecido. Esquecido? Sim, teimosa, anonimamente esquecido, ignorado. Lembrava-se que, mal entrara na loja, o brinquedo captara a sua atenção. Uma espécie de girândola de estrelas multicolores que intercalavam com bonecos variados e igualmente apelativos.
- É o brinquedo ideal para um bebé. Ao puxar-lhe o cordel, os bonecos começam a girar ao som de uma música. Experimente.
Experimentara. Era, efectivamente, um brinquedo delicioso. As estrelas, as borboletas, os ursinhos, tudo rodopiava, serenamente, ao som de “The Little Drummer Boy”. Era como imaginar-se num mundo perfeito, sem escuro, sem papões, sem medos.
Mandara embrulhá-lo e, secretamente, colocara-o no meio dos outros presentes. Como se assim pudesse disfarçar a mágoa, o carinho, a vontade louca de conhecer o João.
O presente ali ficara. Sozinho. Mudo. Expectante. E era Natal! E era dia de ser bom. E era dia de perdoar! Mas o Natal doía-lhe. Aquele Natal em especial. Doía-lhe como uma culpa sem causa. Ou com causa já esquecida…
Está ali sentada e não sabe porquê. As luzes do pinheiro continuam a piscar. Estranhamente não lhe ocorre sequer afastar a solidão daquela manhã fria e cinzenta. Esse encontro consigo é uma espécie de privilégio.
O olhar percorre a sala com uma vaga compaixão por si mesma. Ou pela vida?! A sua? A dos outros? Enquanto o pensamento continua a balouçar sem alibi, o olhar prende-se ao recolhimento e misticismo do velho presépio. Eis uma tradição da qual não abdicara - o presépio antigo da sua meninice. Sorri. Algumas das figuras já estão desbotadas e a precisar de restauro. O menino - coitado - já perdera o ar rosado de recém-nascido e tem, presentemente, um ar amarelecido. Assim como os bebés que nascem com icterícia. Volta a sorrir com a tolice da comparação. Ao São José parece faltar um dedo. Só a Virgem mantém a candura da mãe olhando, embevecida, o filho.
Inexplicavelmente, pega no embrulho abandonado, no chão. Abre-o. Monta-o. Puxa o cordel e, de imediato, as primeiras notas fazem-se ouvir. Quase em simultâneo, as estrelas, as borboletas, os ursinhos começam um voltear gracioso.
Estranho! A estatueta do menino Jesus adquirira - pura ilusão, obviamente - um tom cheio de vida e, por breves segundos, pareceu-lhe que agitava mãos e pernas, tenras e macias, numa alegria incontida. A mesma alegria que, sem sombra de dúvida, o sobrinho teria se visse o brinquedo.
Levantou-se. Entreabriu as persianas. A música absorvia totalmente o silêncio. Voltou a observar as figuras do velho presépio. Estava, decididamente, louca! Numa das mãozitas, o menino segurava uma estrela; na outra, uma borboleta batia, tremulamente, as asas coloridas e transparentes.
AMS
Nota: este ano, finalmente, ela conheceu o João.