sábado, abril 14, 2007

" Em qualquer aventura, / O que importa é partir..."

E partimos. Rumo a S. Martinho de Anta. Rumo à casa do grande escritor Miguel Torga.
No largo da vila, aguardava-nos o presidente da Junta de Freguesia, Sr. Mário Gonçalves, amigo leal do poeta. Foi ele, sorriso escancarado, coração perto dos olhos, quem nos falou de Miguel Torga. Dedilhando lembranças, contou-nos a história de Negrilho, o ulmeiro, ex-libris da terra, reduzido, presentemente, a um tronco seco e estéril. A árvore morreu no ano da morte do doutor - explicou-nos, emocionado. E sempre com voz embargada pela saudade e bem querer, falou-nos das pessoas e coisas que tiveram papel preponderante na vida do poeta. Assim, "perdemo-nos" por entre as azáleas, o noveleiro, a escola do Sr. Botelho, o padre Avelino, a Senhora da Azinheira - gabinete de trabalho do poeta, já que era neste local que o escritor se inspirava para escrever - e tantas outras recordações cheias de matizes e aromas.
O coração e a memória do Sr. Mário não se gastavam. Não se gastarão nunca.
Levou-nos a visitar as duas casas do amigo: o local onde viveu e a campa onde jaz. Na singeleza austera da campa rasa, sob um cipreste solitário, alguém recitou um poema. O rosto do nosso cicerone acolhia com ternura a tonalidade de todas as palavras do poema. Era como uma peregrinação interior renovada de nostalgias e saudade.
- Sabem como se chamam estas flores que orlam a campa? São torgas. Daí o pseudónimo Miguel Torga. O seu nome verdadeiro era Adolfo Rocha. Pertencia a uma família muito humilde. Quando foi estudar para Lamego, a mãe acompanhou-o com o colchão à cabeça, o pai transportava a cama e ele, como era muito pequeno, ia sentado num burro. Sim, que as viagens, naquele tempo, eram feitas a pé – esclareceu.
Valeu-lhe um tio que lhe pagou os estudos. Porém, antes de tirar medicina, foi moço de recados no Porto – concluiu.
Alunos e professores ouviam-no atentamente. O Sr. Mário conversava com as palavras com uma clarividência que comovia.
- Querem vir comigo até à Junta para lhes mostrar algum do espólio de Miguel Torga? – anunciou mais do que perguntou.
Estávamos perante um homem bom, genuíno, profundo, autêntico. Daqueles que não precisam de canudos pois possuem sensibilidade rara, arte narrativa e uma cultura luminosa.
Acompanhámo-lo e entrámos no edifício da Junta. Nesta altura, já todos estavam rendidos à simpatia e simplicidade do nosso guia.
- Todo este mobiliário foi-nos oferecido por ele - elucidou. Um dia, chamou-me a casa dele e disse-me para carregar estes móveis para aqui.
- Senhor doutor, vou guardá-los - disse-lhe eu.
- Se vo-los ofereci para trabalhar, são para trabalhar – respondeu o escritor.
E a narrativa continuava… Alunos e professores - uns sentados nas cadeiras, grande parte no chão - acolhiam com ternura as emoções que lhes chegavam.
- Sr. Mário, perguntou alguém, dá-nos o prazer de lanchar connosco?
- Esperem um pouco e já vos acompanho – proferiu. Tenho de fazer um telefonema…
E lá partimos, guiados, mais uma vez, pelo nosso novo amigo.
Estupefactos, vimo-lo tocar à campainha de um largo portão verde enquanto nos explicava :
- Esta é a minha casa. Se não virem inconveniente, poderão lanchar todos aqui. Já avisei a minha mulher…
E tinha, realmente, avisado, já que, de imediato, uma senhora abriu os portões, convidando-nos a entrar.
- Que nobre gesto! – pensei. Pessoas assim, “tudo amam, admiram e compreendem. São como um sol fecundo”.
- Os senhores professores querem vir ver a minha cozinha? É rústica, mas muitas vezes Miguel Torga ali jantou e ceou.
Entreolhámo-nos - não eram precisas palavras – e seguimo-lo.
A cozinha, espaço largo e acolhedor, pareceu-me familiar.
- Cheira-me a fumeiro - não pude evitar de comentar.
O casal e os meus colegas riram-se. A mulher do Sr. Mário explicou :
- Desde Janeiro, que não há aqui fumeiro. Tem bom olfacto, senhora professora.
Novas gargalhadas ecoaram quando o nosso amável hospedeiro anunciou
jovialmente:
- Não hão-de ir embora sem beber um copito.
Bebemos mesmo. Aquela ingénua confiança não permitia a secura de um não.
Há momentos - como aquele - em que não se pode deixar de gostar das pessoas.
Guardarei, eternamente grata, aquela limpidez de alma que permite acreditar na “grandeza do homem, criatura que cresce enquanto ama".

AMS