Em bicos de pés
Os sintomas não enganam: entramos na era de um sol declinante. Da arrogância. Do mutismo. Das veleidades confusas, monolíticas. Da decepção. Da raiva. Constata-se uma odiosa mistura entre poder e corrupção, tráfico de influências e sentimento de (in)justiça, reformas megalómanas e uma austeridade antimodernista e isolacionista. Incitam-nos a virar a página através de sacrifícios e votos penosos. A economia está, todavia, cada vez nais desarticulada, retrógrada, amordaçada.
A vida passou a ser uma travessia - longa e perigosa - sem sinais de trânsito e com todos os semáforos avariados. O estilo - já inconfundível - deste governo conduz-nos, eficazmente, ao abismo da insegurança, do receio, do silêncio. Tudo serve de pretexto legitimador para suprimir o direito essencial do Homem - a liberdade. E o mais grave é que exigem que acreditemos que o intolerável não é a falta dela, mas a sua reinvindacação.
Estamos nisto.
AMS
desapego
não esperes por mim
olhei o fim da linha
e senti que regressar
era impossível
AMS
Clandestinidade
A realidade do poder assusta-me. Não discute nem convence. Sacrifica liberdades legitimada pela obediência cega de uma maioria ou por obscuros interesses económicos. Refiro-me, claro, a uma certa realidade opaca, sinuosa, enredada e cínica expandindo-se, dia após dia, numa teia lúgubre e perigosa que mais não visa que fortificar o poder de alguns. Curiosamente, a consciência colectiva do(s) povo(s) parece também, dia após dia, cada vez mais adormecida, rotineira, passiva, acomodada. Agonizante.
Ninguém faz nada! No entretanto, em silêncio, a teia prolifera alimentada pelo alheamento de quase todos nós e por uma sede insaciável - fúnebre e funesta - de autoritarismo , dirigismo e medo. Assim, o poder - já anunciado - revela-se.
Receio o final desta história. O futuro de um povo não pode construir-se em gabinetes atolados de verdades escuras, fictícias, patéticas. O futuro de um povo não pode - nem deve - passar por um ataque subtil às liberdades e garantias das pessoas.
Será que se combate a fraude e a corrupção através do controlo de todos os dados dos cidadãos? E aos cidadãos não preocupará o facto de verem as suas vidas privadas expostas a olhares anónimos, talvez desprovidos de ética, gerados por práticas autoritaristas que não visam senão fins pouco claros?
De qualquer modo, o medo começa a alastrar. Se o governo recuou na construção de uma base de dados relativa aos grevistas, não foi de mote próprio. Se o caso do professor que foi acusado de deslealdade - ainda não se lembraram da palavra traição - ao ter emitido uma opinião pessoal, é mais um exemplo de um impúdico atentado à liberdade de expressão, pergunto-me quantos mais exemplos similares haverá sem direito a serem publicitados e discutidos pela opinião pública porque abafados por um silêncio tendencioso, preconceituoso, que deveria provocar em todos nós um sentimento de inquietação em lugar desta acautelada distância face a todos estes indícios de que algo não vai bem.
É por tudo isto - e, receio, pelo muito mais que há-de vir - que julgo estarmos a viver entre parêntesis. Somos vítimas e carrascos. Vítimas de uma poder arrogante e autista; carrascos da nossa perda de identidade e de definições.
O drama do nosso país - o nosso drama - tem, sobretudo, a ver com este vaguear ao sabor de “ melhores dias virão” , numa estratégia apática de defesa. De sobrevivência.
Ainda que essa sobrevivência consista em vivermos como avestruzes sempre com a cabeça debaixo do solo, anestesiando a memória da morte.
AMS
incógnita
a grande incógnita
dos amantes
é não saberem
se respiram o amor
ou se o amor os respira
AMS
(eternamente) Chama
Há gestos de limitado horizonte,
estrangulados no campo do impossível,
que cortam, ferem, aferrolham a vida.
(cinzelam o nada)
Outros há, carregados de venenos leves,
de sorrisos impassíveis passeando a morte,
que nos abandonam à melancolia das ruínas.
(abrem brechas na alma)
E há gestos, banhados pela luz do bem querer,
revelando certezas, entornando ternura,
que nos prendem à vida com laços de comunhão.
(ateiam a esperança)
AMS
nocturno
aprendemos saudade
quando a memória nega a distância
dedilhamos tristeza
quando a saudade toca a alma de abandono
AMS
Dia de Portugal
Desculpa, Portugal, mas não consigo escrever-te com um raiozinho de luz.
Sinto-te mais frágil e mais só apesar das comemorações, dos discursos, das comendas - bafientas, popularuchas - previsivelmente legitimadas por um desolador compadrio.
Tanta palavra oca ou bifurcada. Tanta promessa seca, quase obscena. Tanta falta de moral. Tanto show. Tanta cosmética política.
A falta de vergonha. Que te pesa. Que nos pesa em demasia.
Sem outros comentários.
AMS
subitamente a luz
Há olhares oblíquos rastejando palavras
que, na lividez da sombra, traçam ciladas.
E, no entanto, porque a dor da vontade liberta,
nada consegue impedir o Homem de caminhar - inteiro,
pleno, livre - rumo às estrelas que ousa sonhar.
AMS
entendimento
sei que o voo leve da subida
pode ser
cortante, inesperada vertigem
sei que a errância sedutora que reluz
pode ser
o anúncio breve da noite que cai
sei que o largo rio do desejo
pode ser
furtivo fascínio incendiado
sei que o epicentro da emoção
é
a inesperada leveza do gesto
AMS