domingo, março 05, 2006

Palavras à espera

Tenho uma necessidade quase vital de escrever. Talvez porque a minha ânsia de estancar as lembranças seja impossível de satisfazer. É certo que tento manter pontes entre mim e os outros. Entre a consciência de que precisam de mim e esta estranha necessidade de isolamento sob cuja protecção cheguei a sentir-me segura. Como se os outros não existissem. Como se fosse possível afirmar a vida envolvida numa mortalha. No vácuo.
Por isso me assaltam dúvidas. Por isso sinto necessidade de falar de tudo o que calei. De tudo o que calo. Contei esses fantasmas tantas vezes a mim mesma... que já os sei de cor. Só não sei se terá muito sentido contá-los aos outros. Será que eles entenderiam as razões pelas quais optei por não os expor? Que, se calei, não foi para prejudicar ninguém. Foi, e apenas, para me proteger. Ou por pura incapacidade – não sabia como contá-los.
Existe em todos nós, porém, uma terrível necessidade de consolo que não adianta tentar bloquear. Se o fizermos, não é defesa. É morte. Por mais fundo que se tenha ido numa forma de estar objectiva e pragmática, resiste sempre qualquer coisa de outros tempos, de uma infância distante em que a própria dimensão e inerente capacidade de perceber o mundo nos acordava sobressaltos, despertava fantasmas, trazia medos. Essa ânsia de acalmia, essa necessidade de uma presença maior e mais poderosa que mande embora o que nos incomoda, que escorrace o que nos magoa, que expulse de vez o que nos faz medo, que resolva por nós o que não sabemos, permanece.
Todos queremos colo. Mas mesmo havendo essa necessidade de consolo, de facto, não é igual para todos. Para alguns, a sensação de falta, o confronto permanente com perdas e danos, o espectro de um fim anunciado dilui-se - como diria José Rodrigues Miguéis - "sob o signo da esperança, a própria dor se torna um mito". Para outros, no entanto, não é assim. Inscrevem a dor - e o mito da dor - na essência da própria existência. Mesmo quando reconhecem "que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida", isso não lhes serve de suficiente consolo.
Como formiguinhas, mais do que como poderosos Sísifos, carregamos as nossas necessidades e as nossas possibilidades de apaziguamento. Às vezes, tropeçamos no útil, outras no belo, outras no nosso desajustamento. É apenas assim.

AMS