A Palestra
Sentou-se numa das filas do fim. Tinha chegado um pouco atrasada e tentava, deste modo, evitar a habitual sensação de estar a inalar olhares indiscretos, cheios de censura. Acomodada, respirando alívio - afinal, a palestra ainda não começara - atreveu-se, disfarçadamente, a observar o cenário que a rodeava.
Cerca de uma vintena de pessoas - seria impressão sua ou quase todas se conheciam?! - aguardava, estoicamente, que o orador convidado desse início à sessão. Este, um homem alto, desajeitado e com ar de quem nunca sai à rua sem ser interpelado, agitava-se, freneticamente, entre fios, projectores e… a primeira fila. Receando, talvez, uma sala demasiado desnuda, o distinto professor alojara toda a família nos lugares de honra. Assim - concluiu ela - garantia a presença de seis atentos ouvintes. Bom, era, pelo menos, um homem prevenido. Valeria por dois?
A sala ia-se compondo aos poucos. As pessoas entravam, sentavam-se e cumprimentavam-se. Bolas, aquilo começava a parecer-se demasiado a um daqueles grupos de apoio a alcoólicos anónimos - pensou. Estaria o amável convite impregnado de subtil veneno?!
E o orador que não se decidia a dar sinal de partida! Depois de ter passado mais de vinte minutos à volta do projector de slides - ou talvez por isso - começara a bebericar uma garrafa de água.
Atrás de si, passos apressados, deslocações de ar e de cadeiras e uma voz desolada:
- Já acabou a sessão?
Contendo o riso, tranquilizou um homem com cara de obsessivo-compulsivo - veio a constatar, mais tarde, que era apenas gago, retirando a sábia conclusão de que é errado fazer juízos a priori.
Finalmente, o ilustríssimo - depois de uma apresentação onde nadavam cargos e títulos - tomou a palavra, iniciando um périplo temático assaz motivador. O pior é que, devido, quiçá, a um certo nervoso miudinho, quase se estatela no chão ao tropeçar num dos múltiplos fios que circundavam a mesa. E como um mal nunca vem só, quase de imediato, lança esta pérola - é importante que “estejemos” na posse destes conhecimentos. Ela, honestamente, não estava mas, ao que tudo indiciava, ele também demonstrava uma certa desinformação acerca da conjugação do verbo estar.
A conferência, todavia, ia ganhando um certo interesse e atractivo. Subitamente, um telemóvel faz ecoar, na sala, a música do Yellow Submarine. Esgares dardejantes colaram-se à dona do aparelho que, sem o mínimo pudor atendeu a chamada... em voz baixa. A conferência não podia estar a correr melhor.
Tentando estabelecer uma maior empatia, o douto orador entrega uns inquéritos anónimos à plateia. Irra, agora parecia que estava numa aula. Sem caneta e tudo - como era o hábito de muitos dos seus alunos.
Leu a primeira questão, a segunda, a terceira e a quarta. Pensou, voltou a pensar - o sono, no entretanto, fizera-se anunciar - questionou a vizinha do lado que, amavelmente, lhe emprestara uma esferográfica, e, finalmente - ainda que pouco convencida - foi colocando a respectiva cruz nas várias opções. Começava a acreditar que o convite fora simplesmente um ajuste de contas.
Enquanto o mestre recolhia as folhas, ela matutava sobre uma das questões: Maria, farta de ser o pião das nicas, no emprego, decidira, num belo dia, mimosear o patrão com um emotivo arraial de porrada. Aquele, segundo ela, escravizava-a de trabalho - variado - sempre que uma das colegas faltava - o que acontecia quase todos os dias.
Questão 1 – Maria é vítima da injustiça do patrão?
Questão 2 – Maria não é vítima da injustiça do patrão?
Questão 3 – Concorda com a atitude da Maria?
Questão 4 – Não concorda com a atitude da Maria?
Questão 5 – Empregaria o mesmo método da Maria?
Questão 6 – Não empregaria o mesmo método da Maria?É evidente que assinalara as perguntas 1, 3 e 6. Se, sempre que faltava uma das empregadas, era a desgraçada que ia substituí-la - não se dando a mínima importância ao facto de se tratar de uma tarefa em tudo distinta daquela para que fora contratada - não tinha a menor dúvida acerca da injustiça exercida sobre a coitada bem como da prepotência do patrão. Quanto à tareia - ainda que não fosse adepta do recurso à violência - conseguia encará-la como consequência nefasta - mas hilariante - de uma gerência tirânica e desenfreada.
Feita uma rápida pesquisa estatística às respostas do auditório, o digníssimo - já não escamoteando um ar de quem se sabe detentor de toda a verdade e sapiência - passou à análise das respostas aos cenários apresentados.
Assim, e segundo ele, Maria agira estupida e agressivamente. Não entendera, a infeliz, que se o patrão a mandava cumprir as mais variadíssimas tarefas era, tão-só, porque confiava nela e a considerava muito inteligente e capaz. Tão inteligente que conseguia substituir qualquer colega independentemente do cargo que essa exercesse. Claro, frisou o honorável, que o QI da Maria seria muito relativo, em tudo inferior ao de qualquer um dos presentes na sala - assistir à palestra era, por si só, sinal de muita inteligência - e, sobretudo, ao seu - passe a imodéstia.
Sentiu esbugalharem-se-lhe os olhos perante tal afirmação. Querem ver que o que o fulano está a insinuar é que o patrão, por ser hierarquicamente superior, era mais inteligente do que a Maria? E que ele, por ser professor-doutor, seria o mais inteligente da sala? Que grande lata e que enormíssimo ego! Seria, então, esta a tese que explicava o porquê das carreiras "brilhantes" de certos políticos? Podiam ser uns refinadíssimos idiotas mas, logo que ascendiam ao poder, o seu quociente de inteligência subia, subia e subia. Detê-lo? Missão impossível. Seria bem mais fácil tentar impedir a maré com as mãos.
A oratória continuava num ritmo cada vez mais patriótico. A certa altura, o pedagogo inquiriu:
- Algum dos senhores sabe, por acaso, em que lugar se posiciona Portugal no que diz respeito à ciência e tecnologia, numa lista de cento e tal países? É uma vergonha, meus senhores, uma vergonha! Sempre que coloco esta questão aos meus alunos - jovens universitários, a nata das natas dos QI, como é óbvio - apontam-me os últimos lugares! Uma vergonha. Temos uma falta de auto-estima que brada aos céus. Não sabemos valorizar-nos! Sempre que os ouço pronunciar tal heresia, apetece-me esbofeteá-los! Esbofeteá-los. Corrê-los à bofetada!
Ela levantou-se e saiu. Estava deveras “grata” à pessoa que a convidara para aquela interessantíssima e impetuosa palestra subordinada ao tema – Agressividade: da Neurobiologia à Cultura.
AMS
Acendo-me de vida
Não quero o negro que me ofertas,
que me deserta a alma, fustigando-a
de golpes tingidos de tristeza.
Rejeito essas lacunas, esses silêncios,
difíceis de varrer, que me afastam
das margens e do cais.
Recuso os tons difusos, breves,
presença fugitiva, rastos de ausência.
Quero os verdes, azuis, vermelhos
e dourados, gotas de chuva entremeadas
de raios de sol e de arco-íris.
Acendes-me de sombra. Eu quero a vida.
AMS
Tudo tão perto e tão longe
Num mundo perfeito, não seríamos instrumentos de uma alienação economicista que nos trata como mercadoria ou simples estatística.
Num mundo perfeito, viver de olhos e coração abertos seria o ponto de partida para não mais distorcermos o significado das palavras Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Num mundo perfeito, fosse qual fosse o lado para que olhássemos, encontraríamos sempre as estrelas e nunca o gume de um punhal.
Tivesse o Homem a vontade necessária para passar de uma precária, ignóbil e cinzenta hipótese de existir a uma consciente certeza de Luz e de Voo.
AMS
La Sombrilla
Últimos dias de férias. Tarde de sol escaldante, mas um pouco ventosa. Um majestoso guarda-sol verde, vermelho, amarelo e azul. Duas revistas, um livro por folhear, uma vontade indomável de adquirir um bronzeado pouco bronzeado - como ditam os cânones da moda e da saúde - e um ar de quem, mesmo em férias, mantém uma pose - tons de pastel dourado - de intelectual que, alheio aos demais mortais, lê, pesquisa, estuda e… devora miúdas.* Perto deste fotógrafo atento, quase colado às variadas formas femininas, uma snobe encaracolada espraiava a figura numa extensíssima cadeira de praia, projectando um ego do tipo ‘não-me-toques que eu sou uma obra-prima', numa conversa telefónica que, por certo, fazia jus de partilhar com toda a gente.
De repente, uma voz masculina grita em espanhol:
- Miguel! Miguel! Miguel! **
Foi como se, naquela praia, todos se chamassem Miguel: dezenas e dezenas de cabeças viraram-se, de imediato, em direcção ao muro que circundava a praia. Mas se muitos são chamados, poucos são os eleitos. O homem que bronzeava cultura levantou-se, vestiu uma camisola, pegou nas sandálias, revistas e livro - que continuava fechado - e, dirigindo algumas palavras à sua companheira, rumou em direcção ao eco que enchera a areia, o mar e o céu com o seu nome - como Aónio, o pescador, no soneto de Camões.
A mulher hesitou, hesitou e hesitou. Quando o esplanado Miguel subia já as escadas, ela resolveu levantar-se, colocar o pareo, calçar os chinelos e declamar: - Miguel! Miguel! Miguel!
Novamente todos as cabeças se ergueram, quais antenas, impelidas pela vontade de saber o que se passava, afinal, com o pretendido Miguel.
Nada, pelos vistos. Assim, a curiosidade amainou logo que o Miguel, a mulher e o homem do muro desapareceram.
Cerca de uma hora mais tarde.
O calor e o vento continuavam a disputar-se o primeiro lugar. O primeiro, mordendo os corpos; o segundo, deslocando toalhas e até mesmo incautos guarda-sóis. Muitos banhistas. Crianças brincando junto à água. Portugueses saltitando as raquetes e correndo atrás de bolinhas multicolores. Portugueses estreando flamejantes barcos de borracha. Portugueses jogando futebol e areia. Os habituais ‘lagartos’ dorminhocos. Bizarras narradoras que, sem pré-aviso, fartas do dolce far niente, se distraem a observar canibais, ataviadas espalhafatosas e ocasionais situações de comicidade genuína. Ninguém é perfeito, ora.
De repente, berros, interjeições, palavrões. Centenas de olhos gulosos. Uma palavra repetida vezes sem conta - sombrilla.
Cena hilariante: a companheira do famigerado Miguel, hasteando um guarda-sol igualzinho ao seu mas menos real (de realeza), claro, era perseguida por uma família de portugueses - e curiosos - que, inutilmente, tentavam, explicar-lhe que o guarda-sol lhes pertencia e que ela não tinha o direito de o expropriar, ferozmente, aos seus proprietários.
Este é meu! Meu! Meu! Ladrões! Ladrões! Vão para Portugal! Ladrões! - gritava uma histérica e desequilibrada *** mulher, apontando, violentamente, a sombrilla a quem dela tentava aproximar-se.
Um segundo guarda-sol, completamente encharcado, faz a sua entrada, arrastado por uma conterrânea da fera .
Que acontecera, então? O vento, brincalhão, descolara e arrastara até ao mar a magnífica e soberba sombrilla do Miguel e respectiva cara-metada. Esta, ao regressar à praia, não vendo o tecto multicolor onde o deixara, resolvera ir buscar, sem licença nem recato, o de uns portugueses que, para infelicidade dos donos, era igualzinha ao seu - mas sem high profile, como é óbvio.
Toda a praia - e arredores - tentava explicar à guerreira, sempre agarrada à sombrilla portuguesa, o que se tinha realmente passado. Em vão.
- Ladrões! Ladrões! Este é meu! Meu! Filhos da… ! Não me fales em português nem em galego. Eu sou espanhola! Fala-me em castelhano. Ladrões! Ladrões!
Perante tal histeria, e não havendo quem se atrevesse a descolar o ‘faz-sombra’ dos braços da maluquinha, os portugueses decidiram ficar com o tecto espanhol, deixando o luso em terras espanholas. Uma espécie de intercâmbio entre países. Ainda que contra a vontade de uma das partes.
Portugueses e espanhóis aplaudiram o civismo, paciência e compreensão daqueles portugueses - é pena que ainda não se possa generalizar, tomando a parte pelo todo - acompanhando ao milímetro, com esgares e sorrisos de troça, os gestos da furibunda que, debalde, tentava encaixar a parte superior do guarda-sol no pau espetado junto às toalhas. Tarefa impossível atendendo a que uma das partes falava castelhano e a outra português.
E o Miguelito? Esse, desbotado, amarelado, sem o mínimo movimento, acompanhava a cena, do alto do muro. Mal o viu, a desvairada rosnou:
Miguel! Miguel! Miguel!
*Não há a mínima intenção de fazer entrar na narrativa o célebre Hannibal Lecter.
** A narradora preferiu traduzir a conversa para português visto que não domina o espanhol escrito.
*** O equilíbrio mental era pouco e o físico, como viria a provar-se mais tarde, também muito instável devido aos efeitos do álcool.
AMS
não sei
sei-te importante
porque te sonho
mas não sei como tornar-te real
AMS
Chinesices
Mais uma vez o nosso governo - bem acompanhado pelo presidente da República - revelou uma completa falta de pudor face à visita do Dalai Lama ao nosso país.
Ao ignorar a presença do grande líder espiritual, os nossos governantes mostraram que a defesa dos direitos humanos, da solidariedade e da harmonia entre os povos é, afinal, mera utopia. Mais importante do que investir no bem, é prioritário investir nos "bens", nas conveniências e até mesmo na opressão aos grandes ideais.
O silêncio de Sócrates e de Cavaco Silva vem demonstrar que a política se rege por interesses e não por valores. A pressão da China, que considera a visita ´’inamistosa”, manietou os nossos políticos que, coitados, ainda não perceberam que quem sucumbe a este tipo de manipulação, não se faz respeitar.
Quer-me parecer que o Dalai Lama não perdeu grande coisa ao ser-lhe negada uma visita dita oficial. Encontrar-se com aqueles que, por motivos economicistas, esquecem o massacre na praça de Tienanmem, as penas de morte - segundo a Amnistia Internacional, a China tem cerca de 80% das execuções em todo o mundo - os abortos selectivos , seria, a meu ver, um conluio com a hipocrisia, a farsa e a mentira. E uma grande chatice, diga-se.
Quem, na realidade, fica a perder, é o governo e o presidente da República. Perdem a oportunidade de poder dialogar com o grande mensageiro da paz e do amor. Perdem a oportunidade de abandonar o caos - que ajudam a criar - e de, ainda que por momentos, se aproximarem do Bem e de um mundo melhor.
AMS
Tempo renascido
Porque há sempre algo novo por descobrir
Porque as tardes voltarão a dilatar-se
num tempo que sempre regressa
Porque virão mais ramos floridos
numa nova Primavera
Porque uma poção de luz acaba sempre
por elevar-se sobre o olhar estreito da tristeza
estendendo-se nas ondas sonhadas e largas da vida
Saibamos fruir o presente
cinzelando sem obsessão o futuro
com a absoluta serenidade dos que caminham
confiantes ao encontro do fim que acende eternidade.
AMS
E a espera se fez noite
Recordo ainda o caminho
por onde partiste
equivocando os dias de esperas
e de opaca esperança
O coração debruça-se sobre
o parapeito da ânsia
subindo e descendo a colina
do impossível voltar atrás
O tempo - esse - abre a porta
por inteiro me toma
e diz-me que a espera esgotou
que o que vivi morreu
AMS
Parabéns, Rodrigo!
Sempre que olho para ti,
não duvido que os milagres acontecem
com a beleza amanhecida do real.
Ensinaste-me a vida
azulando-a de começos,
restituindo-lhe a mão certa da esperança.
Que o teu sorriso seja sempre a janela acesa da alegria.
Um beijo.
AMS