sábado, setembro 15, 2007

La Sombrilla

Últimos dias de férias. Tarde de sol escaldante, mas um pouco ventosa. Um majestoso guarda-sol verde, vermelho, amarelo e azul. Duas revistas, um livro por folhear, uma vontade indomável de adquirir um bronzeado pouco bronzeado - como ditam os cânones da moda e da saúde - e um ar de quem, mesmo em férias, mantém uma pose - tons de pastel dourado - de intelectual que, alheio aos demais mortais, lê, pesquisa, estuda e… devora miúdas.* Perto deste fotógrafo atento, quase colado às variadas formas femininas, uma snobe encaracolada espraiava a figura numa extensíssima cadeira de praia, projectando um ego do tipo ‘não-me-toques que eu sou uma obra-prima', numa conversa telefónica que, por certo, fazia jus de partilhar com toda a gente.
De repente, uma voz masculina grita em espanhol:
- Miguel! Miguel! Miguel! **
Foi como se, naquela praia, todos se chamassem Miguel: dezenas e dezenas de cabeças viraram-se, de imediato, em direcção ao muro que circundava a praia. Mas se muitos são chamados, poucos são os eleitos. O homem que bronzeava cultura levantou-se, vestiu uma camisola, pegou nas sandálias, revistas e livro - que continuava fechado - e, dirigindo algumas palavras à sua companheira, rumou em direcção ao eco que enchera a areia, o mar e o céu com o seu nome - como Aónio, o pescador, no soneto de Camões.
A mulher hesitou, hesitou e hesitou. Quando o esplanado Miguel subia já as escadas, ela resolveu levantar-se, colocar o pareo, calçar os chinelos e declamar: - Miguel! Miguel! Miguel!
Novamente todos as cabeças se ergueram, quais antenas, impelidas pela vontade de saber o que se passava, afinal, com o pretendido Miguel.
Nada, pelos vistos. Assim, a curiosidade amainou logo que o Miguel, a mulher e o homem do muro desapareceram.

Cerca de uma hora mais tarde.

O calor e o vento continuavam a disputar-se o primeiro lugar. O primeiro, mordendo os corpos; o segundo, deslocando toalhas e até mesmo incautos guarda-sóis. Muitos banhistas. Crianças brincando junto à água. Portugueses saltitando as raquetes e correndo atrás de bolinhas multicolores. Portugueses estreando flamejantes barcos de borracha. Portugueses jogando futebol e areia. Os habituais ‘lagartos’ dorminhocos. Bizarras narradoras que, sem pré-aviso, fartas do dolce far niente, se distraem a observar canibais, ataviadas espalhafatosas e ocasionais situações de comicidade genuína. Ninguém é perfeito, ora.
De repente, berros, interjeições, palavrões. Centenas de olhos gulosos. Uma palavra repetida vezes sem conta - sombrilla.
Cena hilariante: a companheira do famigerado Miguel, hasteando um guarda-sol igualzinho ao seu mas menos real (de realeza), claro, era perseguida por uma família de portugueses - e curiosos - que, inutilmente, tentavam, explicar-lhe que o guarda-sol lhes pertencia e que ela não tinha o direito de o expropriar, ferozmente, aos seus proprietários.
Este é meu! Meu! Meu! Ladrões! Ladrões! Vão para Portugal! Ladrões! - gritava uma histérica e desequilibrada *** mulher, apontando, violentamente, a sombrilla a quem dela tentava aproximar-se.
Um segundo guarda-sol, completamente encharcado, faz a sua entrada, arrastado por uma conterrânea da fera .
Que acontecera, então? O vento, brincalhão, descolara e arrastara até ao mar a magnífica e soberba sombrilla do Miguel e respectiva cara-metada. Esta, ao regressar à praia, não vendo o tecto multicolor onde o deixara, resolvera ir buscar, sem licença nem recato, o de uns portugueses que, para infelicidade dos donos, era igualzinha ao seu - mas sem high profile, como é óbvio.
Toda a praia - e arredores - tentava explicar à guerreira, sempre agarrada à sombrilla portuguesa, o que se tinha realmente passado. Em vão.
- Ladrões! Ladrões! Este é meu! Meu! Filhos da… ! Não me fales em português nem em galego. Eu sou espanhola! Fala-me em castelhano. Ladrões! Ladrões!
Perante tal histeria, e não havendo quem se atrevesse a descolar o ‘faz-sombra’ dos braços da maluquinha, os portugueses decidiram ficar com o tecto espanhol, deixando o luso em terras espanholas. Uma espécie de intercâmbio entre países. Ainda que contra a vontade de uma das partes.
Portugueses e espanhóis aplaudiram o civismo, paciência e compreensão daqueles portugueses - é pena que ainda não se possa generalizar, tomando a parte pelo todo - acompanhando ao milímetro, com esgares e sorrisos de troça, os gestos da furibunda que, debalde, tentava encaixar a parte superior do guarda-sol no pau espetado junto às toalhas. Tarefa impossível atendendo a que uma das partes falava castelhano e a outra português.
E o Miguelito? Esse, desbotado, amarelado, sem o mínimo movimento, acompanhava a cena, do alto do muro. Mal o viu, a desvairada rosnou:
Miguel! Miguel! Miguel!


*Não há a mínima intenção de fazer entrar na narrativa o célebre Hannibal Lecter.
** A narradora preferiu traduzir a conversa para português visto que não domina o espanhol escrito.
*** O equilíbrio mental era pouco e o físico, como viria a provar-se mais tarde, também muito instável devido aos efeitos do álcool.

AMS