terça-feira, fevereiro 28, 2006

quatro do quatro de dois mil e nove

Habituei-me a escrever como que deslizando para o interior de mim mesma.
Sem a palavra escrita é como se a minha alma permanecesse fechada, cheia de pequeninos ecos, pequeninas esperanças que se cruzam e se perdem entre si. Só convivo harmoniosamente comigo quando, através da escrita, tomo consciência de que sou capaz de me encontrar ainda que, à minha volta, tudo voe pelos ares.
Não escrevo para pseudo interlocutores, tentando sublimar a minha intimidade numa nudez voluntária, fantasiosa e equívoca destinada a servir de anzol a “incautos” leitores. Escrevo, tão-só, para me traduzir e para, ao tentar decifrar-me, decifrar os outros. Escrevo para me afastar da solidão e do vazio dos que me cercam. Escrevo para aprender a aceitar a vida conforme ela me vai aparecendo. E até para lhe agradecer.
A verdade é simples e, de modo algum, indigna. No meu caso, quando escrevo, ela é um sopro, o reflexo infinitamente credível do que sinto ou julgo sentir. Ainda que a verdade possa ser pura fabulação - já que todos passamos a vida a desejar o que é maior do que nós, o que nos é inacessível - ela não pode ser apenas um meio de transgressão amenizado por uma imaginação fértil e despudorada. Ela pode ultrapassar o limite da sensatez, mas nunca do indigno. Indignos são aqueles que com as suas venenosas interpretações, as suas calúnias ou até mesmo com as suas convenientes verdadezinhas, ocas de moral, esmorecem o brilho dos outros para o converter em sombra. Há egos muito mal tratados, sem significado, despovoados de quase tudo o que faz sentido e que, a pretexto de quererem salvar o mundo - no fundo, nada mais querem do que salvar-se - desbaratam tempo e energias em recriminações ou cobranças num contencioso perpétuo com a vida, com os outros, com eles próprios.
Seja como for, o acto da escrita, em mim, nunca será o testemunho de um íntimo disfarce, encenado, dúbio. O acto de escrever é sempre a vida à minha volta: inesperada, violenta ou apaziguadora, irreversível, mas profundamente sentida. E é para e sobre ela que escrevo, iludida ou lúcida, no momento mais puro da minha identidade.
Hoje deu-me para reler algumas das “páginas” aqui escritas. Encontrei-me em algumas. Noutras, somente sobreviveu a nostalgia do que eu cri verdadeiro. Em meia dúzia delas, não captei nada daquilo de que me julguei detentora. Li-me, não me reconheci e dou comigo a pensar: era realmente aquilo que eu via ou somente aquilo que eu pretendia mostrar-me, acreditar?!
Bom, pelo menos, hoje, sei que estou aqui. Real e nítida. De que preciso mais?

AMS

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Como é que o real entra no inventado?

Senta-te aí um bocadinho… Não faças essa cara! É importante para mim. Quero que percebas o meu mundo. Fecha os olhos. É como jogar às escondidas. Não, não vás por aí, por favor. Tenho receio que te escondas bem de mais. Que encontres um lugar tão inacessível e remoto, que eu não dê contigo quando terminar este jogo. E, em vez de nos encontrarmos, correremos o risco de nos perdermos.
Claro, pode haver sempre uma réstia de esperança. Esperança... Detesto esta palavra. Associo-a a cruzar os braços, a declaração de impotência. Já não tenho esperança de nada. Aprendi a lutar pelas coisas até ao limite do impossível, não do possível. O possível está ao nosso alcance. Só o impossível nos desafia verdadeiramente.
Julgavas que ia contar-te a minha vida? Não. Quero apenas confirmar que estou viva, escrevendo, uma a uma, as palavras que me representam. Gostaria de deixar escrito quem sou. Se te mencionar palavras como: cobardia, angústia, medo, felicidade, será que me compreendes? É difícil, não é? Eu própria duvido do significado de algumas. Adeus, por exemplo. Não sei muito bem o significado da palavra adeus. Adeus tem a ver com acabar, será? Com algo que se esgotou. Adeus é sinónimo de partir, creio. Nunca se deve partir pelo que nos fizeram. Devemos partir pelo que não nos fizeram.
Não te assustes, não estou louca. Não tenhas medo. Eu também já não tenho. A maior parte das pessoas tem medo da solidão. Associa-a à ideia da morte. Nada há de mais misterioso do que a morte. Não a morte em abstracto, mas a daquela pessoa que deixa de nos poder abraçar, cujo sorriso se apaga e a voz já não ouvimos. Só que, às vezes, é forçoso deixar partir. E que nos resta depois? Perscrutar o céu. Não para ver estrelas - que já não se vêem estrelas nas cidades, tantas são as luzes que à noite se acendem para espantar o medo do escuro. Se buscamos, na noite, o clarão esbranquiçado da lua, é para ter saudades. É o que tenho. O que escolhi.
Não estás a perceber nada, não é assim? Baixas a cabeça. O silêncio protege-te. As palavras revelam-me. Pobre de mim. Respirar. Ser. Pensar.
O jogo acabou. Podes ir embora. Eu não existo. Nunca existi. A verdade é essa.

AMS

domingo, fevereiro 26, 2006

fuzilamento

acreditamos sempre
no que queremos acreditar
ainda que as palavras
que nos atirem
aquelas com que escarninhamente
nos fuzilam a alma
nos atinjam perfeitas
na dor
tão imperfeitas
no amor

AMS

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Poema-Memória

Um amigo partiu.

A saudade e as palavras
vão-se tornando pedras na garganta,
marcos na memória.
E há um adeus que não se disse,
uma indefinida tristeza,
porque a distância aconteceu,
nítida no seu mistério.

Um amigo partiu.

Guardamos silêncio,
bebemos saudade,
restando-nos a verdade do que foi certo.
Tudo muda, tudo passa
num rodopiar de espanto,
frio, sombras, nada.

Um amigo partiu.

Mas o gesto que afeiçoou a sua mão
à nossa mão,
esse... ficou!

AMS

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Tempo suspenso

Respiro a serenidade do céu, a beleza tranquila - tão natural - de um ramo de violetas, a embriaguez dos prados verdes, o cheiro da chuva, o voo ondulante da pequena borboleta, o marulhar das águas do tanque, a luz morna no recôndito da folhagem, o orvalho fresco da infância, a doce melancolia do que nos transcende, redefinindo lembranças, coroando-as da pureza original.
São momentos de paz e quietude. Lentos minutos que tocam a eternidade apaziguadora da espera no contorno do encantamento.
Tempo de prodígio. De irrealidade. De harmonia de emoções.
Que nos fica dele? Que fica de nós? Tão mansamente transitórios…

AMS

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Quem sabe?!

Quem sabe, um dia, vais poder compreender, sem acusar, seguindo as leis do coração, tudo aquilo que não te pude dizer?!
Quem sabe, um dia, vais poder perdoar, percebendo o jogo de encenações que a vida nos propõe, tudo o que ousei ocultar, assustada de cegueira e voos indecisos?!

Quem sabe, um dia, quando as árvores nuas de folhagem, secos os ramos, oscilarem, inquietas, vacilantes, ao sabor do vento, ao prazer do tempo que foge com um esgar de escárnio e alqueivada solidão, tu possas, num lúcido vislumbramento, assomar à verdade, acreditando naquilo que eu não pude mostrar. Que o meu olhar não negou o teu olhar. Que a minha boca fechou as palavras, não por desdém, sequer por orgulho, apenas por recear a frieza da tua. Que o meu sorriso, agora jazendo nas planícies sem fim do esquecimento, somente aguardava que o brilho do teu iluminasse a escuridão de quem, às vezes, sem guia e sem rota, se dava pressa de atingir o exacto momento da união do nada e da plenitude?!
Quem sabe, um dia, quando eu já não existir, possas, enfim, entender, toda a infinita grandeza deste querer, deste sentir?! Quem sabe, um dia, possas acreditar que a minha alma, no derradeiro adeus, no derradeiro suspiro, na milésima de segundo que antecede o depois, pôde, sem pudor, sem receio, confessar, abertamente, que, durante toda a vida, umas vezes vencida, outras vezes erguida, tu foste, és e serás o meu amor!?

AMS

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Festa

Ontem,
festejei não sei que data.
Talvez a do cansaço e solidão
à beira mágoa,
talvez a de um tempo de partida,
de esquiva despedida,
ou outra não sei qual recordação.

Ontem,
festejei o que foi, o que passou,
o que resta, o que ficou,
num festim de amargura e consciência
de que algo já secou,
já só é reminiscência
do que não foi verdadeiro,
mas continua a doer no corpo inteiro.

AMS

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Tesouro

Tenho-te guardado em mim
na pureza das coisas que amanhecem
sopros de ternura.
O meu coração deu-te guarida,
falando contigo num tempo que pára
para encontrar um fio de água,
um sorriso, a eternidade.
Guardo-te, como se guarda um tesouro
inestimável, irrepetível,
e vou olhando, de vez em quando, o mapa
que desenha a tua imagem,
indicando-me sempre o caminho até ti.

AMS

sábado, fevereiro 18, 2006

Leio ausência

A tua presença não me conforta - penso centenas de vezes. Para me convencer, certamente…
Porém, se não vens, sinto-me vazia, tão desprotegida, tão frágil. Que intrusos são estes que em mim se pronunciam? Sentires que se julgam devedores? Incerteza? Saudade? Ou o medo de que eu e as lembranças sejamos os únicos habitante do mundo?
Hoje, por que demoras? É difícil tentar explicar-te o que eu própria não consigo compreender. É doloroso. Provavelmente, se eu chegasse tão tardiamente, ninguém notaria a minha falta. De que falsas ilusões se constroem utopias!
Sempre que chegas é como se me fosse oferecido um presente breve, apátrido, quase inacessível. Nunca te entregas completamente. Estás e não estás. Sei perfeitamente, embora tu não o creias, que a vida não é só poesia e frases bonitas. Aprendemos à nossa custa. Em geral, as pessoas preocupam-se tão pouco com os outros. Tu, por exemplo, passas pela minha vida e... não me vês. Fico sempre com a ideia que me condenaste a estar só. A caminhar paralelamente a ti, nas margens do mesmo rio, mas sem nunca nos encontrarmos. Linhas paralelas nunca se encontram...
Por que inventei eu que haverias de ser diferente?! Por que falas sempre sem sorrir?! Por que ofereces apenas palavras perfeitas na sua dureza, na sua exactidão, na sua pontaria?!
Sabes o que me apetece fazer quando não chegas, até mesmo quando chegas? Adormecer. E, na manhã seguinte, renascer deste desamor quase ritual, abrir a janela e dizer - hei-de encontrar o meu caminho. Em alguma parte, alguém me esperará...
E tu, depois de esfumares o cansaço da minha presença, hás-de sentir o peso da minha ausência.

AMS

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Vem ouvir

Escuta a música do mar,
o seu alento e respirar,
deixando a alma captar a melodia
que flui dentro de nós como magia.

Atenta na canção do vento,
entoando sons em movimento,
ritmos, pulsares, respiração,
sob a carne incandescente de emoção.

Vem ouvir o cântico da noite,
cálido, lento, impregnado
de sombras, gemidos, desejos,
voragem, delírios, ternura,
como fogo entrelaçado
de volúpia, prazer, candura.

Vem ouvir em mim o que não sabes.
Que dias há em que te invento.
Que dias há em que te nego.
Que dias há que em mim encerro
esta ânsia de querer e ocultar,
esta raiva de negar, mas desejar.


AMS

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Estranha Leveza

Somos vagabundos submersos
no silêncio, na ausência,
na falta de amor que nos dilacera.

A vida manda-nos viver
obedecendo ao destino,
eliminando a ideia de que a revolta existe.

Viver o profundo precário,
o escombro interior dos dias,
as sombras que anulam o sulco do sonho.

Somos vagabundos que hesitam,
no porto onde o tempo se perde,
voltar para trás ou continuar.

Mas está frio e a noite cai.


AMS

Toco-te

A minha mão tocou-te. O mar
tributa essa canção de vida.


Joaquim Manuel Magalhães