sexta-feira, setembro 29, 2006

Quero tudo porque tudo posso querer

Quero tudo porque tudo posso querer.
Não quero as coisas comezinhas
Costumeiras, usuais.
Quero ser universo
Não casa.
Ser via láctea
Não entrada.
Ser grito
Não rumor.
Quero tudo porque tudo posso querer
Mesmo que em troca receba uma mão cheia de nada
Mesmo que seja pó e não estrada
Mesmo que seja só mesmo rumor.
Quero tudo porque tudo posso querer
Porque tenho o desejo dentro
De voar mais veloz do que o vento
De rugir mais que qualquer tempestade
E de deixar marcas
A minha
E que me lembrem quando não for
Como quem tudo queria porque tudo se pode querer
Como quem ninguém limitou dentro
Mesmo ouvindo dela só o rumor.

Encandescente
Colecção Polvo

quarta-feira, setembro 27, 2006

Uma lâmpada acesa

Uma lâmpada acesa dentro das veias
E nenhum princípio está preso às pálpebras.

Sou o lado interior do silêncio.

O que me dói no chão das palavras
É o latejar duma fuga
Que não existe.


Maria do Céu Costa

sábado, setembro 23, 2006

Não choro...

A dor não me pertence.

Vive fora de mim, na natureza,
livre como a electricidade.

Carrega os céus de sombra,
entra nas plantas,
desfaz as flores...

Corre nas veias do ar,
atrai nos abismos
curva os pinheiros...

E em certos momentos de penumbra
iguala-me à paisagem,
surge nos meus olhos
presa a um pássaro a morrer
no céu indiferente.

Mas não choro. Não vale a pena!
A dor não é humana.

José Gomes Ferreira

quinta-feira, setembro 21, 2006

uma pedra ao lado da evidência

Às vezes uma palavra toma-me
de assalto a frase; ou por tolo?
Olho-a muito: dissipa-se,
e a lacuna fica em órbita,
rondando o poema.
Palavras só as mais altas, digo,
as que põem ao teu alcance o silêncio.
Porém, um discurso político
escorre a acuidade dos meus sentidos.
No desdém há ainda, cativo, um perfil.
No ódio, uma paisagem siciliana.
Mas, a um d.p., vejo isto:
uma pedra ao lado da evidência.
Lázaro levanta-se e caminha? Não.
É a estátua da nossa perplexidade,
enfim volante, abandonando a praça.


Sebastião Alba

domingo, setembro 17, 2006

O pouco ou muito...

O pouco ou muito a diferença é pouca.
Todos temos pouco e só há quem tenha
além do pouco muito.

São poucos esses e a pouco e pouco
inexoravelmente são mais poucos
ante os muitos muitos.

E a diferença sendo pouca é muita.
Todos temos pouco muito então,
além do muito pouco.

Jorge de Sena

quinta-feira, setembro 14, 2006

Um Perfeito Doido

Estendia-se o doido em loucos relvados
Longos os braços, alvos, depenados,
Olhos de raposa vislumbrando demónios alados.

A erva envolvia-lhe os cabelos.
Agora, já não tinha pesadelos.

Os demónios poisavam-lhe no peito.
Ele acolhia-os com respeito
E fazia das lágrimas deles o seu leito.

Nadava o doido entre duas dunas.
Decifrava cifras, decifrava runas.

Quando o sol se pôs,
Ergueu os braços e voou qual albatroz.
Doidos somos nós...

Fernando Henrique de Passos

quarta-feira, setembro 13, 2006

As Aparições


A felicidade é disparatada como uma rosa na boca de um jacaré. Em seu esforço para não ser um jacaré, extasia-se o homem na felicidade de o não ser completamente dizendo isso num sorriso monstruoso que é uma rosa na boca de um jacaré. Ah! como o assassino é legível na ária da felicidade que lhe floresce na boca! Todos os assassinos trazem uma flor na boca: um sorriso de metódicas navalhas. Todos os felizes são assassinos, ou vítimas, é a mesma coisa. Recusar a felicidade é vomitar a memória, deslembrança do sítio onde o ouro se transforma em chumbo.
Só conheço uma espécie de miseráveis: os felizes. Porque a felicidade é o tributo que pagam à miséria da existência.
Somos no que nos excede e só a infelicidade verdadeiramente nos excede. A alegria também um pouco porque é a resplandecente e frenética ironia da felicidade não existir.
Um novo dia! dizem os felizes, perfurando as paredes da esperança para espreitarem suas nádegas operárias do vício solitário do triunfo nos quartos de curta permanência que a felicidade aluga. Um novo dia! diz gota a gota a baba com que os felizes tecem seu sequestro de esperançosas toupeiras.
Como se não houvesse sempre e apenas um só dia, uma onda ininterrupta, eternamente solta trespassando-nos na vida que os campos sáfaros da existência alaga. Um volátil e fixo sustenido de platina de um intocado violino que os felizes fingem dividir em agulhas com que malcriadamente palitam os olhos nos sítios mais concorridos.


Natália Correia

terça-feira, setembro 12, 2006

Poema em Linha Recta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes
das etiquetas,
Que tenho sido grosseiro, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora das possibilidades do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez
foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então só sou eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Álvaro de Campos

segunda-feira, setembro 11, 2006

A Lorca

Quiero dormir un rato
apenas o viver de um entreacto
no indefinido fluir da vida

Un rato, un minuto, un siglo
que seja o verdadeiro sono
sem pesadelos nem sonhos

Pero que todos sepam qui no he muerto
que morrer não é dormir
mas acordar do outro lado
e viver sempre acordado
ignorando o sono eternamente

José Blanc de Portugal

domingo, setembro 10, 2006

álbum interior


creme de limpeza
tónico de limpeza
reafirmante/nutriente nocturno
creme contorno dos olhos
gel para o pescoço
creme para os lábios
creme para as mãos


Espalha-se tudo, à noite, com a ponta dos dedos, em movimentos circulares, vigorosos, secos, ensonados, tontos.
Envelhecer é isto, quinze minutos diários para manter a ilusão.
Até que um dia, em vez de ser eu a abordá-lo de longe, o espelho me apanhe de surpresa num implacável grande plano. E vá tudo para o lixo.

Julieta Monginho

quarta-feira, setembro 06, 2006

O que faço aqui


Não sei se o mundo mentiu
eu menti
não sei se o mundo conspirou contra o amor
eu conspirei contra o amor
O ambiente da tortura não é confortável
eu torturei
Mesmo sem a nuvem de cogumelo
teria odiado
Escutem
teria feito o mesmo
mesmo que a morte não existisse
não me colocarão como a um bêbedo
sob a fria torneira dos factos
recuso o álibi universal

(...)


numa estranha irmandade
eu espero
que cada um de vós confesse

Leonard Cohen, What I'm doing here

sexta-feira, setembro 01, 2006

arquitectar destinos

Ninguém pode passar a vida a esconder-se da sua própria história com medo que ela não acabe como sonhou.