Não choro...
A dor não me pertence.
Vive fora de mim, na natureza,
livre como a electricidade.
Carrega os céus de sombra,
entra nas plantas,
desfaz as flores...
Corre nas veias do ar,
atrai nos abismos
curva os pinheiros...
E em certos momentos de penumbra
iguala-me à paisagem,
surge nos meus olhos
presa a um pássaro a morrer
no céu indiferente.
Mas não choro. Não vale a pena!
A dor não é humana.
José Gomes Ferreira
Um Perfeito Doido
Estendia-se o doido em loucos relvados
Longos os braços, alvos, depenados,
Olhos de raposa vislumbrando demónios alados.
A erva envolvia-lhe os cabelos.
Agora, já não tinha pesadelos.
Os demónios poisavam-lhe no peito.
Ele acolhia-os com respeito
E fazia das lágrimas deles o seu leito.
Nadava o doido entre duas dunas.
Decifrava cifras, decifrava runas.
Quando o sol se pôs,
Ergueu os braços e voou qual albatroz.
Doidos somos nós...
Fernando Henrique de Passos
Poema em Linha Recta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar
banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes
das etiquetas,
Que tenho sido grosseiro, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo
ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora das possibilidades do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas
ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez
foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então só sou eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
arquitectar destinos
Ninguém pode passar a vida a esconder-se da sua própria história com medo que ela não acabe como sonhou.