sábado, maio 26, 2007

Quando as eminências são pardas, qualquer arco-íris é um sacrilégio.

AMS

sexta-feira, maio 25, 2007

As Eleições

Marrecos de Baixo estava em alvoroço. Nem a romaria em honra de Nossa Senhora dos Atrofiados - mentais? - criava tanta agitação, tanta euforia, tanta discussão, tanto discurso carregadinho de pitorescas metáforas e de obstinadas asneiras.
Que facto originara tal rebuliço? A morte imprevista de Augusto Macieira, abastado negociante de fruta, dono da mercearia-drogaria-café-restaurante “Piercing” - nome que a filha mais nova, repetente fiel do 8º ano, achara fixe e bué baril - e digníssimo presidente da Junta de Freguesia, despoletara uma crise de identidade naquela, até ali, pacata terreola.
Depois do choque, dos pêsames e de uma sentida despedida acompanhada pela fanfarra do grupo recreativo da terra, o povo viu-se a braços com um terrível dilema - quem iria substituir o defunto? Que homem - mulher estava fora de causa visto que o mulherio da terra era quase todo loiro - dedicaria a sua vida em prol dos marrequianos?
O padre Afonsinho, a pedido das beatas - sempre receosas do Apocalipse e crentes de que só o presidente da Junta e o santo do pároco poderiam resguardá-las das maquiavélicas conspirações de Satanás, um através das suas influências no céu, o outro através dos seus conhecimentos na terra - resolvera dedicar parte dos seus sermões a consciencializar as suas ovelhas da necessidade de escolherem um candidato inundado de espírito patriótico, bem falante, influente e carismático - no que se refere a este último adjectivo os eleitores ficaram um tanto ou quanto na sombra já que nenhum conhecia o significado da palavra. Contudo, e como voz de padre é voz de Deus, a partir daquele momento a palavra carismático passou a andar de boca em boca ainda que um pouco estropiada. Se alguém se lembrava de apoiar este ou aquele patrício, logo um coro indignado de vozes proclamava - esse não pode ser pois não é carimástico. Assim se enriquece a língua portuguesa!
O certo é que as palavras do cura fizeram eco na consciência de alguns patrióticos e, como por milagre, os marrequianos viram-se, da noite para o dia, com três heróis e um independente. O primeiro era Serafim da Eira, ex-emigrante, seguido de Zé da Moina, ex-guarda republicano, Joaquim Louça, reformado, e Lourenço Pistácios, professor primário.
A campanha decorreu em paz e concórdia. Como todas, aliás. Isto, claro, se apagarmos as rixas entre os apoiantes de Serafim e os de Zé da Moina - bem mais coloridas que as da claque dos dragões; os insultos de Louça a Pistácios que, como independente, prometera manter uma posição vertical durante toda a campanha eleitoral - desiludiu o eleitorado quando levou com um murro de um rufia, apoiante de um não candidato, que o deixou anestesiado e numa vergonhosa posição horizontal; os boatos criados pela viúva de Augusto Macieira que se aliara, de corpo e alma, ao ex-guarda, tendo, pelas provas de lealdade - e entrega total - sido nomeada mandatária da campanha do mesmo; e, finalmente, a “isenção” do padre Afonsinho que, por indicação divina, passara a ver no ex-emigrante o “eleito". O certo é que a oferta de um chequezito à igreja bem como a promessa de uma nova imagem - toda em mármore do Alentejo - da Senhora dos Atrofiados teria sido a principal razão da sua eleição - espalhava a língua viperina da viúva. Boatos, gritava indignado, do alto do púlpito, o pastor.
À hora do fecho das urnas, ainda se desconhece o resultado. O padre, no entanto, festeja já a vitória - com espumante da Raposeira - em casa de Serafim da Eira. Não é em vão que as forças celestiais estão do seu lado. E as beatas também. Zé da Moina resolvera de igual modo celebrar, antecipadamente, a vitória com a sua viúva. Afinal, ainda que perdesse as eleiçoes, tinha ganho a viúva e o seu - dela, está visto - farto pé-de-meia. Joaquim Louça, atacado por uma forte crise de reumático, amaldiçoava, entre ais e uis, os conselhos do seu mandatário que o aconselhara a uma campanha porta a porta. Já o professor, coitado, enquanto lia pela centésima vez uma carta da DREN incriminando-o de conspiração contra o governo e suspendendo-o das suas funções, jurava a si mesmo não voltar a meter-se em tais andanças. Jamais (citando o ministro Mário Lino)!

AMS

segunda-feira, maio 21, 2007

Fadas e fados

Nascera sob o signo de fados adversos, de mirabolantes premonições e de uma inclinação azarada para extremar atitudes, sentimentos e emoções. Era mesmo capaz de acreditar que, aquando do seu nascimento, uma fada, caprichosa e plebeia, resolvera presenteá-la com o seguinte dom - Nunca a tua vida deslizará morna e insensível como uma espécie de bocejo interminável. Terás o coração muito perto da boca, sobrevalorizarás detalhes, modelando-os de importância desvairada e trágica. Chorarás em memória de tudo e em memória de nada sempre perseguida por um talvez que acabará por ficar para amanhã. Amanhã a vida muda. Mas só mudará se não perderes tempo a adiá-la.
Custava-te alguma coisa, fada malvada, mudar a ementa, limitando-a a carradas de beleza, inteligência e talento? - pensava. Picuinhas!
E assim crescera: misto de Madalena de Vilhena - dividida entre presságios fatídicos, não sei o que me adivinha o coração e a chamada angústia para o jantar - e uma desconcertante Maria - a noviça de Música no Coração - forte como o vento, vulnerável como o ar, sem manual de regras, transgressora inconsciente do politicamente correcto, adepta fervorosa de paixões sofridas - daquelas que se encaixam num cantinho do coração e para as quais não há tecla de delete que as arraste para o limbo do esquecimento - enfeitando, sem bluff, a vida com risos e lágrimas num jogo de imponderáveis, linhas curvas, linhas rectas, subidas, declives, desencontros, laços, silêncios, murmúrios.
Em suma, era uma trapalhona assumida, óptima a imaginar azares e desgraças - frenesins vários que só pioram as coisas - com uma vocação incrível para confundir gato por lebre, amealhando sonhos e desilusões - sempre dolorosamente vividas - com um autocontrolo oscilante e muito dado a desmoronamentos.
Sabia, contudo, que a sua humaníssima fragilidade nada tinha a ver com aridez de fundo nem com atitudes acessórias, cretinizantes, medíocres.
Pensando bem, ainda que a sua vida se alimentasse, algumas vezes, de chatices e inesperados acidentes, nunca se alimentaria de hábitos. E ainda que ela repetisse mil vezes - Não sei o que me adivinha o coração! - albergando mil probabilidades fatídicas, tinha como aliada esta certeza - nunca seria uma mera fotocópia de quem quer que fosse.
A verdade é que a sua insustentável leveza era também orientada por um acentuado lado cómico. Transformava, num piscar de olhos, uma chuvada num dilúvio; uma cantilena ligeira numa ópera arrastada e trágica; uma falhazita quase invisível num erro cósmico; um aborrecimento em miniatura num sinal divino e punitivo; uma história feita de instantes numa epopeia desfocada… Enfim, era o que alguns apelidavam de pessimista jovial, alternando entre o mórbido e o anedótico. O seu lema? Para quê simplificar se posso complicar, era óbvio. E era certinho que complicava. Mas quando verificava - e, mais cedo ou mais tarde, acabava sempre por chegar a essa constatação - que a vida não custava assim tanto e não era o absurdo em que a pintava nem um campo povoado de malentendidos e de rasteiras invisíveis, enfrentava os medos e receios, lançava pela janela a “sua” realidade em pó, arquivava desgraças, aquietava a alma e, surpreendentemente, reconciliava-se com o mundo, com os outros, com ela mesma.
Nascera sem imagem de marca. Uma fada, sábia e serena, ofertara-lhe um dom - saltar ou cair só dependerá de ti.
E não faz mal cair. E sabe bem saltar.

AMS

sábado, maio 19, 2007

Ergo sum

A vida vive-se.
Logo, a vida vive-me.

Vasco Graça Moura

sábado, maio 12, 2007

e a ave cansada de esperar

e a ave cansada de esperar rasgou o teu olhar e disse:

parte. faz caminho. palavras inteiras. faz como se fos-
ses o mais experimentado e soubesses que as amoras
sobre o muro são bravas e tardias. parte.

há tanto sítio para onde ir e nenhum onde ficar.

Ariadne (livro)

Espera

Faltam-me as palavras porque tenho o teu nome
gravado em cada poro do meu corpo, em cada
ínfima parte da alma. Escrevo-o nos quatro cantos
da folha como se, assim, pudesses aparecer no
meio dela. Talvez, quem sabe, para te trazer de
regresso à minha vida numa espécie de acto de
ressurreição. Já escrevi tantas histórias, umas
vividas, outras adivinhadas, mas nunca consegui
abrir luz ao gesto de escrever a nossa. E não quero
construí-la a partir do irreal ou do impossível.
Por isso, ela acaba sempre por escorregar-me por
entre os dedos, refugiando-se no não concreto e
na mudez do desejo. Faltam-me as palavras.
Não porque estejam gastas, mas porque nenhum milagre
as acendeu, levando-as a dizer o que não dizem.
O teu nome, porém, vive em mim como um inevitável toque
de mão sobre o fogo. Movo-me entre o seu som reprimido
e a tua presença ausente. Como que um enigma ininterrupto,
interminável, cuja resolução, caprichosa e incerta,
se enreda sempre nas escadas íngremes do inatingível.
Acabo por afastar a folha e fecho os olhos, maniatada
por uma espera que arde há muito. Mesmo sabendo que a
espera é a raíz dolorosa do que só na alma nos pertence.

AMS

domingo, maio 06, 2007

MÃE

Se dizes mar, agarro-me à palavra,
navego na transparência da água,
avanço no sonho, absorvo a ternura
que escorre entre a luz e o vento,
abarcando, tonta de azul, o infinito.

Mas acabo sempre por voltar, mãe,
quando me olhas profundamente
e sussurras, com a certeza enternecida
do percurso efémero das marés - filha!

AMS

terça-feira, maio 01, 2007

MAIO

Desfraldei um raio de sol
no primeiro sorriso da manhã.
Ateei um fogo de esperança
numa tenra flor desabrochando
e, com o pensamento em ti,
libertei uma canção de amor,
sinfonia a bailar no coração,
sentindo crescer dentro de mim,
sobre a rama verde dos afectos,
o suave sabor do bem querer.

AMS