sexta-feira, maio 25, 2007

As Eleições

Marrecos de Baixo estava em alvoroço. Nem a romaria em honra de Nossa Senhora dos Atrofiados - mentais? - criava tanta agitação, tanta euforia, tanta discussão, tanto discurso carregadinho de pitorescas metáforas e de obstinadas asneiras.
Que facto originara tal rebuliço? A morte imprevista de Augusto Macieira, abastado negociante de fruta, dono da mercearia-drogaria-café-restaurante “Piercing” - nome que a filha mais nova, repetente fiel do 8º ano, achara fixe e bué baril - e digníssimo presidente da Junta de Freguesia, despoletara uma crise de identidade naquela, até ali, pacata terreola.
Depois do choque, dos pêsames e de uma sentida despedida acompanhada pela fanfarra do grupo recreativo da terra, o povo viu-se a braços com um terrível dilema - quem iria substituir o defunto? Que homem - mulher estava fora de causa visto que o mulherio da terra era quase todo loiro - dedicaria a sua vida em prol dos marrequianos?
O padre Afonsinho, a pedido das beatas - sempre receosas do Apocalipse e crentes de que só o presidente da Junta e o santo do pároco poderiam resguardá-las das maquiavélicas conspirações de Satanás, um através das suas influências no céu, o outro através dos seus conhecimentos na terra - resolvera dedicar parte dos seus sermões a consciencializar as suas ovelhas da necessidade de escolherem um candidato inundado de espírito patriótico, bem falante, influente e carismático - no que se refere a este último adjectivo os eleitores ficaram um tanto ou quanto na sombra já que nenhum conhecia o significado da palavra. Contudo, e como voz de padre é voz de Deus, a partir daquele momento a palavra carismático passou a andar de boca em boca ainda que um pouco estropiada. Se alguém se lembrava de apoiar este ou aquele patrício, logo um coro indignado de vozes proclamava - esse não pode ser pois não é carimástico. Assim se enriquece a língua portuguesa!
O certo é que as palavras do cura fizeram eco na consciência de alguns patrióticos e, como por milagre, os marrequianos viram-se, da noite para o dia, com três heróis e um independente. O primeiro era Serafim da Eira, ex-emigrante, seguido de Zé da Moina, ex-guarda republicano, Joaquim Louça, reformado, e Lourenço Pistácios, professor primário.
A campanha decorreu em paz e concórdia. Como todas, aliás. Isto, claro, se apagarmos as rixas entre os apoiantes de Serafim e os de Zé da Moina - bem mais coloridas que as da claque dos dragões; os insultos de Louça a Pistácios que, como independente, prometera manter uma posição vertical durante toda a campanha eleitoral - desiludiu o eleitorado quando levou com um murro de um rufia, apoiante de um não candidato, que o deixou anestesiado e numa vergonhosa posição horizontal; os boatos criados pela viúva de Augusto Macieira que se aliara, de corpo e alma, ao ex-guarda, tendo, pelas provas de lealdade - e entrega total - sido nomeada mandatária da campanha do mesmo; e, finalmente, a “isenção” do padre Afonsinho que, por indicação divina, passara a ver no ex-emigrante o “eleito". O certo é que a oferta de um chequezito à igreja bem como a promessa de uma nova imagem - toda em mármore do Alentejo - da Senhora dos Atrofiados teria sido a principal razão da sua eleição - espalhava a língua viperina da viúva. Boatos, gritava indignado, do alto do púlpito, o pastor.
À hora do fecho das urnas, ainda se desconhece o resultado. O padre, no entanto, festeja já a vitória - com espumante da Raposeira - em casa de Serafim da Eira. Não é em vão que as forças celestiais estão do seu lado. E as beatas também. Zé da Moina resolvera de igual modo celebrar, antecipadamente, a vitória com a sua viúva. Afinal, ainda que perdesse as eleiçoes, tinha ganho a viúva e o seu - dela, está visto - farto pé-de-meia. Joaquim Louça, atacado por uma forte crise de reumático, amaldiçoava, entre ais e uis, os conselhos do seu mandatário que o aconselhara a uma campanha porta a porta. Já o professor, coitado, enquanto lia pela centésima vez uma carta da DREN incriminando-o de conspiração contra o governo e suspendendo-o das suas funções, jurava a si mesmo não voltar a meter-se em tais andanças. Jamais (citando o ministro Mário Lino)!

AMS