segunda-feira, maio 21, 2007

Fadas e fados

Nascera sob o signo de fados adversos, de mirabolantes premonições e de uma inclinação azarada para extremar atitudes, sentimentos e emoções. Era mesmo capaz de acreditar que, aquando do seu nascimento, uma fada, caprichosa e plebeia, resolvera presenteá-la com o seguinte dom - Nunca a tua vida deslizará morna e insensível como uma espécie de bocejo interminável. Terás o coração muito perto da boca, sobrevalorizarás detalhes, modelando-os de importância desvairada e trágica. Chorarás em memória de tudo e em memória de nada sempre perseguida por um talvez que acabará por ficar para amanhã. Amanhã a vida muda. Mas só mudará se não perderes tempo a adiá-la.
Custava-te alguma coisa, fada malvada, mudar a ementa, limitando-a a carradas de beleza, inteligência e talento? - pensava. Picuinhas!
E assim crescera: misto de Madalena de Vilhena - dividida entre presságios fatídicos, não sei o que me adivinha o coração e a chamada angústia para o jantar - e uma desconcertante Maria - a noviça de Música no Coração - forte como o vento, vulnerável como o ar, sem manual de regras, transgressora inconsciente do politicamente correcto, adepta fervorosa de paixões sofridas - daquelas que se encaixam num cantinho do coração e para as quais não há tecla de delete que as arraste para o limbo do esquecimento - enfeitando, sem bluff, a vida com risos e lágrimas num jogo de imponderáveis, linhas curvas, linhas rectas, subidas, declives, desencontros, laços, silêncios, murmúrios.
Em suma, era uma trapalhona assumida, óptima a imaginar azares e desgraças - frenesins vários que só pioram as coisas - com uma vocação incrível para confundir gato por lebre, amealhando sonhos e desilusões - sempre dolorosamente vividas - com um autocontrolo oscilante e muito dado a desmoronamentos.
Sabia, contudo, que a sua humaníssima fragilidade nada tinha a ver com aridez de fundo nem com atitudes acessórias, cretinizantes, medíocres.
Pensando bem, ainda que a sua vida se alimentasse, algumas vezes, de chatices e inesperados acidentes, nunca se alimentaria de hábitos. E ainda que ela repetisse mil vezes - Não sei o que me adivinha o coração! - albergando mil probabilidades fatídicas, tinha como aliada esta certeza - nunca seria uma mera fotocópia de quem quer que fosse.
A verdade é que a sua insustentável leveza era também orientada por um acentuado lado cómico. Transformava, num piscar de olhos, uma chuvada num dilúvio; uma cantilena ligeira numa ópera arrastada e trágica; uma falhazita quase invisível num erro cósmico; um aborrecimento em miniatura num sinal divino e punitivo; uma história feita de instantes numa epopeia desfocada… Enfim, era o que alguns apelidavam de pessimista jovial, alternando entre o mórbido e o anedótico. O seu lema? Para quê simplificar se posso complicar, era óbvio. E era certinho que complicava. Mas quando verificava - e, mais cedo ou mais tarde, acabava sempre por chegar a essa constatação - que a vida não custava assim tanto e não era o absurdo em que a pintava nem um campo povoado de malentendidos e de rasteiras invisíveis, enfrentava os medos e receios, lançava pela janela a “sua” realidade em pó, arquivava desgraças, aquietava a alma e, surpreendentemente, reconciliava-se com o mundo, com os outros, com ela mesma.
Nascera sem imagem de marca. Uma fada, sábia e serena, ofertara-lhe um dom - saltar ou cair só dependerá de ti.
E não faz mal cair. E sabe bem saltar.

AMS