terça-feira, julho 11, 2006

Esta corrida terminou!

"Meninas e meninos, senhoras e senhores, esta corrida vai terminar!"
E a música esmorecendo. E o carrossel cada vez mais lento, mais lento…
A corrida chegou ao fim. Resta-me sair e, ainda tonta de tanto voltear, dar lugar a outros passageiros. A novas vertigens. A outras ilusões que, como as minhas, irão, pouco a pouco, perdendo o brilho, num mundo cheio de fugazes matizes.
A minha breve odisseia acaba aqui. E a escrita também.
Comecei a dar-me conta que, embora não possa reduzir o que escrevo a uma mera questão formal, alguma coisa de vital fica por atingir. Faltam-me as palavras exactas ou sou incapaz de traduzir o que sinto através delas? Quando escrevo tristeza, desato todas as letras da palavra. Solto-as. Mas elas ficam submissas, caladas. E não consigo escrever o tamanho da minha tristeza. Quando escrevo solidão, esta ganha forma através da palavra e parece ser possível abrir a porta. Uma qualquer porta. Mas os meus olhos não se habituam ao escuro e a porta continua fechada à chave por dentro. Não a consigo abrir. E, do lado de fora, embora haja janelas muito iluminadas, os prédios são muito altos. Demasiado frios. Habitados por pessoas que falam outras línguas, que não percebem a mensagem indizível - porque tudo à volta é silêncio - de alguém que viaja através de palavras suspeitas. Clandestinas. Dificilmente sentidas.
Perco-me com estas ambiguidades insolúveis. Acabo, quase sempre, cansada, confusa, lutando para me sentir real.
Nosce te ipsum. Nosce te ipsum. Não se pode cumprir um destino que está sempre para além das nossas capacidades. Que sabemos, na realidade, de nós mesmos? Desconcertante interrogação. Dolorosa peregrinação em busca do inatingível.
Não tenho planos nem crenças. Tenho caminhado às voltas. Sempre às voltas. Num circuito eternamente fechado. Farta de saber que não vou a lado nenhum.
Hoje por hoje, esta corrida acabou. As palavras, cansadas, vão dormir. Por quanto tempo? Não sei. Talvez até ao momento em que aquilo que elas dizem e aquilo que pretendem dizer não entre em rota de colisão, permitindo que o calor da vida faça um pacto de paz com o frio da memória. Talvez até que o côncavo e o convexo da escrita recusem uma procura sem sentido, encontrando nas palavras a sua dimensão real e não apenas a sombra da sua projecção.
Até uma outra corrida!

AMS

sábado, julho 08, 2006

o desencantador

Chega-se a esta idade quando se chega
e deita-se contas à vida. Um homem ha-
bitua-se a tanta coisa, até a este exercício
de lavar a intimidade no tanque sem fundo
da escrita... E assim se vai descarnando
a poesia, de desabafo em desabafo, até
à ruína final. Que parceiros para este
jogo das verdades, para a pontada aguda
entre o riso e o siso. Esbanja um homem
o melhor de si em camas agrestes, em
copos de fel, em mesas de dados
para chegar a este ponto e concluir
que não fez sequer metade do que ameaçou,
que só tem cães vorazes e cobardes
a rondarem-lhe as canelas, que o tão
decantado discurso é apenas o sítio
onde esconde a cara cansada como na infância
numas saias velhas a um canto da casa.
Só os comboios nocturnos a apitarem
pontuais lá em baixo se constituem como
prova de que existe outra realidade
para além do azedume das palavras perfiladas.
Nem sequer tenho a coragem de chegar ao osso.
Porque dói. Porque deve haver uma ética,
um fingimento nisto tudo... Mas às vezes
o fingimento maior é ser capaz de não fingir,
de cair na noite sem alarido e acordar expurgado
de toda a merda sitiante, do fumo e do escârnio.
Peço desculpa do incómodo e, já agora,
da humildade com que me desculpo. Não há
desespero que valha um bom poema. Retratos de
mim faço-os para consumo próprio e alegro-me
quando fico por aqui.


José Jorge Letria
O Desencantador de Serpentes

sexta-feira, julho 07, 2006

Tempo cativo


Hoje
O dia não sorriu
Fechou-se numa tristeza funda
De sombras e silêncios
Lágrimas tangendo em céus de espera
Como que antecipando longa noite
Doente de solidão
Que num fundo poço em si me prende
Pesando como pedra
Vergando o coração.

Hoje
Nem o dia sorriu
Nem eu sorri
Adivinhando viagens escarpadas de impossíveis
Nas repetidas ruas onde se acoitam mágoas
Sacudidas por um vento gelado de lonjura
Obstinadamente poeira de um desejo
Dono e tirano
Onde nasce e desliza
A tua ausência.

AMS

quinta-feira, julho 06, 2006

sombra e luz


Vejo quase sempre imperfeição no que faço. A minha urgência de clarificar o jogo de luzes e sombras de que somos feitos poderá ser a causa que me lança, perpetuamente, numa lamentável confusão. Numa decepção que se dissemina e me faz vacilar sem saber para onde ir ou o que procurar.
Todavia, paradoxalmente, a esta insatisfação, indistinta e surda, opõe-se uma tenacidade - não falha de vulnerabilidade - orgulhosa, expectante. Viver não é em vão. E se me torno outra para ser eu mesma, usando ou não usando uma espécie de disfarce, não possuo a arrogância autista - miseravelmente perversa - de certos romeiros da vida.
Não respiro sub-repticiamente. Respiro com a inquietude lúcida da minha singularidade. Da minha pequenez. Mas até para assumirmos a nossa pequenez é preciso mostrar coragem. Nesse aspecto não me desiludo.
Nos trajes viciados de alguns vejo mais do que aquilo que aparento ver. Subestimam, esses alguns, os meus trajes sem atributos. As certezas, como as verdades, não são mais do que máquinas fotográficas que captam o que está. Ineficazes, porém, face ao que, aparentemente, não está. Mas existe.
Colher e saborear um fruto está ao alcance de qualquer um. Sentir a emoção de o saborear é atingir o instante exacto do inapercebido que oculta a grandeza de uma vida. Poucos, muito poucos a sentem.

AMS

quarta-feira, julho 05, 2006

Uma história de amor

Apetece-me escrever uma história de amor. Digna de uma estúpida sentimental, ultra-sensível, desejosa de refúgios seguros, mas desafiando, permanentemente, um destino já de si precário.
Será melhor começar por ela ou por ele? Primeiro as damas, não?
Ela estava apaixonada. Ponto final. Ainda que consciente das suas limitações, ainda que um tanto perdida e atordoada, sentia-se cheia de vida e de projectos. Ao fim e ao cabo, se a Rapunzel tinha conseguido sair da torre onde estava encarcerada, por que motivo não poderia ela viver o sonho - ainda que breve - de se sentir uma Cinderela? Bom, faltava-lhe a madrinha, era óbvio, e, no seu caminho, deparava-se, frequentemente, com bruxas más… Estava, todavia, convicta, confiante de que, finalmente, tinha entrado na história certa.
Que dizer dele? Charmoso, culto, espirituoso e com uma notável desfaçatez. A história do costume: casado. Alguém à margem da lei - como diria, sabiamente, a mãe. Carente. Despertando montanhas de instinto maternal e protecção. Infeliz. Tão infeliz! - lamentava-se. Coitado. Coitadinho.
Voltemos à heroína. Bastou-lhe um olhar de través do desgraçadinho para minar o equilíbrio da sua vida. Em suma, teve o pior dos azares ao partilhar o mesmo táxi, num dia chuvoso, com o seráfico.
Que não havia problema. Que era um prazer poder prestar-lhe aquele favor. Que não queria vê-la toda encharcada - como teria ele adivinhado que não estava vacinada contra a gripe?! Que na vida ainda há felizes coincidências. Que… Que… Que…
Enfim, abreviando a história, ela, que sempre tivera vocação para confundir gato por lebre, não resistiu. O ar catatónico do coitado impeliu-a a partilhar o táxi, o assento e o telemóvel.
E a história de amor continua…
A vida não é fácil e nem sempre é simples. Muito menos justa. O charmoso se, por um lado, parecia uma espécie de Peter Pan desejoso de um colo onde saciar a sua sede de ternura, por outro, era um mentiroso profissional sempre com o radar pronto a interceptar ingénuas desprevenidas e… sem táxi. Sim, ninguém é perfeito. E, se existe paixão, sofre-se. Não é assim em todas as histórias de amor?
Neste preciso momento a narradora depara-se com um terrível dilema - mata os dois, mata só um, ou não mata nenhum?
É evidente que o generoso não soube apreciar uma pessoa excepcional. Não é menos evidente que essa pessoa excepcional era um pouco néscia. Não sabemos todas que a magia caduca a curto prazo e que, na generalidade, os príncipes viram sapos no momento menos oportuno?
Que final dar, então, a estas personagens? Matar a esposa? Não creio que o final feliz para uma bonita - e romântica - história de amor passe por um casamento com um viúvo. Demasiado tétrico esse desfecho.
Como se pretende uma versão moderna de uma história de amor, talvez o melhor, afinal, seja reiniciar a história.

Dia chuvoso. Paragem de táxis. Um homem e uma mulher. Subitamente, aparece um táxi. Correm os dois em direcção ao veículo. Ele, mais rápido, abre a porta. Ela, mais ágil, dá-lhe um pontapé. Ele tropeça. Ela entra. O táxi põe-se em andamento. Ela ri e pensa - Já não há cavalheiros. Para esperto, esperta e meia.
Na paragem, ele blasfema - Neurótica. Camafeu. Frustrada. A tua sorte é eu ser um cavalheiro.

Num outro ponto da cidade, numa qualquer paragem do autocarro, a doce esposa troca olhares lânguidos com um jovem tímido e corado - daqueles que parecem trazer um rótulo com o seguinte escrito: leva-me para casa, pois estou abandonado - que, gentilmente, resolveu partilhar o seu guarda-chuva com ela.

Conclusão: O amor surge do nada. Mas talvez seja melhor não inventar histórias de amor. Vivamos as nossas.


AMS

terça-feira, julho 04, 2006

corolário

Se penso, logo resisto.

com certeza

A vida é um instante e, por isso, não pode ser curta e rápida. O tempo de vida não se subsume no tempo com vida. Acredito que há uma eternidade que nos devolverá a diferença entre estes dois tempos. Com vida e de vida.

ao deus-dará

No teatro da vida o que não parece quase sempre é. E o que é teima muitas vezes em não parecer.

segunda-feira, julho 03, 2006

A ingratidão não tem memória

"A gratidão é o paraíso" disse, de forma exacta e belíssima, William Blake. Porque a gratidão faz-nos dar valor a tudo o que a vida e as pessoas nos deram e dão.

domingo, julho 02, 2006

Parabéns!

Voltei a lembrar-me de ti. De nós. Da nossa infância, como se ela pudesse ser vivida e revivida sem fim. Não pode. É apenas uma palavra. Simples. Gasta. De todos os dias.
Que nos aconteceu? Onde, quando, como perdemos o afecto que nos ligava? A humildade e a emoção de saber que podíamos contar um com o outro? Quem foi o primeiro a “matar” o outro? A desligar o que nos unia para o resto das nossas vidas? Não existe virtude na bondade se ela assenta num interesse subjacente. Se ela funciona como moeda de troca, isenta de qualquer preocupação afectiva.
Não, não pretendo excluir-me da culpa que me cabe. Além disso, começo a duvidar cada vez mais das minhas apreciações. Dos meus juízos. Dos meus valores. Dou-te a vantagem de uma perspectiva diferente. Talvez tenhas razão - não podemos falar de decência ao falarmos de coisas. Abaixo as razões altruístas! Entre o bem e o mal, quando se trata de investimentos materiais, não há parâmetros exactos. Ou, se os há, são puro desperdício. Predadores e vítimas confundem-se. A nossa dignidade é uma coisa extremamente frágil, começo a concordar contigo. Se, outrora, eu pensasse assim, talvez não me tivesses excluído da tua vida. Talvez não me sentisse uma tonta libélula das palavras. Talvez não me banhasse nesta tristeza, que nada tem a ver com ciúmes ou inveja, e que é tanto mais íntima quanto universal. Talvez eu pudesse ter esquecido que hoje fazes anos. Não esqueci. Apesar de tudo, ainda não consegui entrar no mecanismo do jogo das relações humanas. Porém, aplicar considerações morais a toda esta situação seria mais um equivoco. Não consigo desculpar o teu comportamento, mas também não consigo entender o meu. Sob todos os ângulos, começo a perceber que a razão do nosso afastamento tem a ver com uma premissa muito simples – não sabemos amar. Não sabemos perdoar. Esquecemos, ambos, o sentido da vida.
Tu continuarás a sentir um orgulho paradoxal na superioridade da tua vontade sobre o coração. A tua vida continuará tão tépida quanto os teus sentimentos. Eu continuarei a entabular comigo mesma o negócio dos arrependimentos, perdida, miseravelmente, num comportamento standartizado, estranho e irrespondível. Ambos nos declaramos o direito de ser e de estar. Sós. Irremediavelmente sós, num universo de ruínas e de desesperanças.

Parabéns, Paulo.


AMS

sábado, julho 01, 2006

Errâncias

Não foi fácil habituar-me à ideia de que as nossas vidas se catalogariam pela distância, fundeadas num diluído amor que não regressa.
Houve um tempo feito de minúsculas palavras, de transparentes silêncios e manso respirar. Tempo de quem tudo se devia e dava. Ou o invés.
-
Gosto muito de ti. Estou grato por esta fatia de vida que me foi consentida - dizias, agarrando-te a palavras tentadoras. Que ambos julgávamos salvadoras.
- Ajuda-me a viver. A afastar esta inquietação que transporto comigo. Tenho quase sempre a sensação de andar a perder um tempo precioso, receio cair numa mediocridade que me destruirá. Quero reter o amor. Quero ser feliz! - implorava, tentando preencher as falhas, as pequenas cobardias, os medos.
-
És demasiado exigente contigo e com os outros. Precisas de rir mais, de não levar tudo a sério, de aspirar leveza. No fundo, cada um de nós tem as suas próprias estratégias e defesas para estar na vida. Eis o único caminho possível.
- Eu faço parte dessa tua lista de estratégias? Sou uma dessas estratégias?

- Minha querida, quando perderes tudo, já não perdes nada. Nada é gratuito. Tudo submerge nas vagas das garantias fixas e finitas. É importante fingir. Falar de banalidades. Sobretudo, não pensar. Pensar é o começo da intranquilidade. Hoje por hoje, sem ti, os meus dias são ocos, mais longos e mais tristes. Amanhã? O amanhã não interessa ao hoje. O teu mal é partires seja para o que for com expectativas muito altas, difíceis de manter e impossíveis de superar. O amor acaba por ceder lugar ao desamor. A raiva à mágoa. A desilusão à indiferença e ao esquecimento. Não podes mudar a natureza dos homens. Não é suficiente dizer que, hoje, gosto de ti?!
-
Talvez chegue… não sei… - e, pela primeira vez, via-te incalculavelmente longínquo em mim. A tua verdade, a tua estratégia - a tua defesa - contrariavam a minha vontade. A minha vontade de querer, todavia, era mais forte do que a minha vontade de salvação. De apaziguamento.
Tu procuravas a amplidão. Eu procurava certezas. Tu carregavas o imprevisto. Eu carregava receios. Deste-me um corpo. Eu desejava um amor intocado de efemeridade. Tocado de plenitude.
Dizer-te o quê? Sozinha sonhei o longe e a direcção possível dos ventos. Ficou a rota das tempestades em noite de naufrágio. E um olhar errante por sobre a crista das palavras. Agarrando-se a elas. Perdendo-se nelas.
Hoje entendo melhor que a sensação que as palavras nos deixam é apenas a de um conforto aparente que traduz, quantas vezes, o engano de nós mesmos, o escamotear as verdades, a realidade com
roupagens. Mas o sonho era bom de mais para não o viver.
Hoje sei que a vida não se decreta em função de encontros ou desencontros. Ou existe ou não existe.

AMS