quarta-feira, julho 05, 2006

Uma história de amor

Apetece-me escrever uma história de amor. Digna de uma estúpida sentimental, ultra-sensível, desejosa de refúgios seguros, mas desafiando, permanentemente, um destino já de si precário.
Será melhor começar por ela ou por ele? Primeiro as damas, não?
Ela estava apaixonada. Ponto final. Ainda que consciente das suas limitações, ainda que um tanto perdida e atordoada, sentia-se cheia de vida e de projectos. Ao fim e ao cabo, se a Rapunzel tinha conseguido sair da torre onde estava encarcerada, por que motivo não poderia ela viver o sonho - ainda que breve - de se sentir uma Cinderela? Bom, faltava-lhe a madrinha, era óbvio, e, no seu caminho, deparava-se, frequentemente, com bruxas más… Estava, todavia, convicta, confiante de que, finalmente, tinha entrado na história certa.
Que dizer dele? Charmoso, culto, espirituoso e com uma notável desfaçatez. A história do costume: casado. Alguém à margem da lei - como diria, sabiamente, a mãe. Carente. Despertando montanhas de instinto maternal e protecção. Infeliz. Tão infeliz! - lamentava-se. Coitado. Coitadinho.
Voltemos à heroína. Bastou-lhe um olhar de través do desgraçadinho para minar o equilíbrio da sua vida. Em suma, teve o pior dos azares ao partilhar o mesmo táxi, num dia chuvoso, com o seráfico.
Que não havia problema. Que era um prazer poder prestar-lhe aquele favor. Que não queria vê-la toda encharcada - como teria ele adivinhado que não estava vacinada contra a gripe?! Que na vida ainda há felizes coincidências. Que… Que… Que…
Enfim, abreviando a história, ela, que sempre tivera vocação para confundir gato por lebre, não resistiu. O ar catatónico do coitado impeliu-a a partilhar o táxi, o assento e o telemóvel.
E a história de amor continua…
A vida não é fácil e nem sempre é simples. Muito menos justa. O charmoso se, por um lado, parecia uma espécie de Peter Pan desejoso de um colo onde saciar a sua sede de ternura, por outro, era um mentiroso profissional sempre com o radar pronto a interceptar ingénuas desprevenidas e… sem táxi. Sim, ninguém é perfeito. E, se existe paixão, sofre-se. Não é assim em todas as histórias de amor?
Neste preciso momento a narradora depara-se com um terrível dilema - mata os dois, mata só um, ou não mata nenhum?
É evidente que o generoso não soube apreciar uma pessoa excepcional. Não é menos evidente que essa pessoa excepcional era um pouco néscia. Não sabemos todas que a magia caduca a curto prazo e que, na generalidade, os príncipes viram sapos no momento menos oportuno?
Que final dar, então, a estas personagens? Matar a esposa? Não creio que o final feliz para uma bonita - e romântica - história de amor passe por um casamento com um viúvo. Demasiado tétrico esse desfecho.
Como se pretende uma versão moderna de uma história de amor, talvez o melhor, afinal, seja reiniciar a história.

Dia chuvoso. Paragem de táxis. Um homem e uma mulher. Subitamente, aparece um táxi. Correm os dois em direcção ao veículo. Ele, mais rápido, abre a porta. Ela, mais ágil, dá-lhe um pontapé. Ele tropeça. Ela entra. O táxi põe-se em andamento. Ela ri e pensa - Já não há cavalheiros. Para esperto, esperta e meia.
Na paragem, ele blasfema - Neurótica. Camafeu. Frustrada. A tua sorte é eu ser um cavalheiro.

Num outro ponto da cidade, numa qualquer paragem do autocarro, a doce esposa troca olhares lânguidos com um jovem tímido e corado - daqueles que parecem trazer um rótulo com o seguinte escrito: leva-me para casa, pois estou abandonado - que, gentilmente, resolveu partilhar o seu guarda-chuva com ela.

Conclusão: O amor surge do nada. Mas talvez seja melhor não inventar histórias de amor. Vivamos as nossas.


AMS