quinta-feira, junho 29, 2006

saber ouvir o silêncio

Recordo-o com a doçura das coisas boas que passam pela vida. Aliás, creio que fui eu que passei pela dele. Acaso? Destino? Será irrelevante. O importante, aquilo que me levou a escrevinhar estas linhas, é que o pouco tempo que com ele contactei deu-me a fantástica possibilidade de conhecer um homem extremamente íntegro, culto, bondoso, fascinante, de uma sabedoria que só o tempo e o carácter desenvolvem e, acima de tudo, tolerante. Compreendia, como ninguém, que somos humanos e propensos ao erro. Sabia perdoar e esquecer… coisa rara. Talvez a única coisa que o irritasse solenemente fosse o que ele, ironicamente, apelidava de “gente com miolos de passarinho”. Irritava-o que “borboletassem” à sua volta pessoas sem cérebro, daquelas que, raramente, se dão ao trabalho de pensar e que não passam de meros papagaios repetitivos e fastidiosos. Irritava-o a futilidade de alguns, sempre em voos rasantes de artificialismo, vaidade, cegueira e verniz. E, no entanto, percebia-se que a fragilidade do ser humano o comovia.
Foi um avó diferente. Não me recordo que pegasse em mim ao colo, me mimasse ou, atendendo ao facto de eu ser a única neta do sexo feminino, me tratasse de modo menos justo ou mais piegas. Mas a sua presença era atenta e foi a primeira pessoa a colocar-me um livro na mão. Nada lhe escapava, Quantas vezes, sentado no banco de pedra do jardim, vendo-me rondar, sorrateiramente, cofiava o bigode, sorria e acenava para que me aproximasse.
- Está ocupado, avô? - era a pergunta habitual, enquanto me sentava também no banco, aguardando as suas palavras.
- Não, Ana. Estou a sentir a vida. É bom poder parar para observar o que nos cerca , recusando uma visão uniformizante das coisas. Já fizeste os deveres da escola?
- Já, já! - e imitava os seus gestos, a sua observação, o seu recolhimento. Diga-se, em abono da verdade, que a “tal visão uniformizante das coisas” escapava ao meu vocabulário e ao meu parco conhecimento. Havia, contudo, uma cumplicidade que nos aproximava, que nos aproximou sempre e que, ainda hoje, não consigo definir nem explicar.
- Que estás tu a ver, pequena? Diz-me o que vês…
- Os campos, o pomar, o tanque, lá ao fundo, o carreiro que leva às vinhas, o “Zarolho" - era o cão fiel que o acompanhava para todo o lado e cujo nome, na altura, em nada despertava a minha atenção. Mais tarde, vim a saber que o “Zarolho” era afinal um falso zarolho e que fora baptizado com aquele nome “em honra” de um antigo feitor. Esse, sim, cego de um olho, devido a uma rixa com ciganos no arraial de Nossa Senhora dos Remédios.
- Aprende a sentir o cheiro da terra, o murmúrio das folhas, o canto da água que cai no tanque. Aprende a ouvir o silêncio. Sabes ouvir o silêncio das coisas?
Eu cerrava, com toda força, os olhos e tentava, desesperadamente, ouvir o tal silêncio.
- Abre os olhos, menina. A vida é para ser encarada de olhos bem abertos e atentos. Sem indecisões. A linguagem do silêncio é fácil de captar. Basta deixar o coração prendê-lo. Porém, a maioria das pessoas não gosta de o ouvir, porque ele funciona como uma espécie de confessionário, percebes? Raramente, as pessoas gostam de reconhecer-se no que o silêncio lhes diz e preferem atordoar-se com palavras desprovidas de significado e verdade. Mas o tempo encarrega-se, mais cedo ou mais tarde, de lhes mostrar que o silêncio está cheio de surpresas e quanto melhor o percebermos mais expressivo e rigoroso é...
- Avô, tu ficaste mais amigo do silêncio desde que a avó morreu, não foi?
As minhas palavras perturbaram-no. A figura do meu avô estremeceu. “Zarolho”, com a cumplicidade dos velhos companheiros, arrebitou uma orelha e pareceu suspenso da resposta do dono.
- Sim, tens toda a razão. Tornei-me mais amigo do silêncio, porque, desse modo, converso melhor com a avó. Sem lonjuras. Sem achar estranho que a vida continue e os dias passem, inexoravelmente…
- Avô, para onde vão os dias que passam?
Uma gargalhada sonora pôs termo ao silêncio do silêncio.
- Querem ver que me saiu uma neta filósofa?! Hum… para onde vão os dias que passam? Agora é que a menina Ana deixou o avô baralhado. Para onde vão os dias que passam?... Os dias não passam. Os dias repetem-se. Nós é que passamos. Mas como fazer-te entender a efemeridade da vida, menina?! Lembras-te daquela fotografia que está no meu quarto?
- A do seu casamento, avô?
- Essa. De que cor eram os meus cabelos na fotografia?
- Pretos.
- De que cor são agora?
- Brancos.
- Onde está a avó da fotografia?
- Morreu, avô!
- Percebes, agora, o que quis dizer quando te expliquei que somos nós que passamos?!

Percebo, avô! Não percebi muito bem na altura, mas percebo, agora. E também percebo como é importante saber ouvir o silêncio. Foi porque o estive a ouvir… que consegui reviver as nossas conversas e escrever este texto.

AMS