segunda-feira, junho 19, 2006

Na "Terra do Nunca"

Umas horas diante do meu velho amigo mar. É o suficiente para apagar o culto das ruínas e a eterna e incessante busca de uma felicidade plastificada. Deixo de pensar no amor por carência, volto a acreditar na abundância de certos sentimentos, desnudo-me do cinismo e incredulidade em que quase todos estamos mergulhados... e vejo-a.

Não a pessoa que, inconscientemente, invento; vejo a mulher real, a que desperta em mim uma vaga melancolia, um desalento perdido num labirinto desordenado de imagens e ideias. Aquela que desleixa, quantas vezes, a voz do coração e, de certa forma, tem medo de viver... ou vive a meio gás. A vida passa, os comboios de "corda" param, mas ela não corre para os apanhar. Não quer? Não pode? Será que as calhas são para ela e não para eles? No fundo, há ainda uma voz que diz - "Corre, tens tempo. Corre!" - mas parece que há sempre um momento em que o tempo fica quieto - ou será ela que não se move? - e o comboio parte. É como se a vida fosse um constante corte de ligações, de razões, uma amputação permanente.
Um dia - já não recorda como, quando, nem a razão de lá ter ido - viajou até à Terra do Nunca. Uma espécie de paraíso da infância que nos afasta da dor, da mesquinhez do mundo, das pequenas lutas quotidianas, decerto difíceis, mas também susceptíveis de conquistas e prazeres reais. Nesse lugar não há tempo. Não há passado, presente... nem futuro. Só miragens. Sonhos. Alucinações. Na Terra do Nunca não interessam as respostas, porque não há perguntas. Não há sofrimento, porque não há vida. Não agimos, não vemos, não amamos. Imaginamos, apenas, que agimos, vemos e amamos. E é tão ténue a diferença, que a alma se deixa enganar, iludir. Estar na Terra do Nunca é estar em todo o lado e em parte alguma; é pensar que se pertence a todos e não pertencer a ninguém. É ver um mundo sem falhas, mas não lhe encontrar qualquer sentido.
E a mulher pensativa, inactiva, atordoada, lá continua sentada, num banco de estação, vendo os comboios partir. Será que ainda terá tempo de repensar o seu erro?


Ouço o som das ondas e aprendo com elas a sabedoria da existência. Como se cada segundo fosse o tempo todo. Aprendo, também, a dimensão do homem e a precaridade da vida. Não há fórmulas mágicas para se ser feliz. Há os momentos que soubermos aproveitar. E há amor. E há dor. Há um mundo de mil e uma imperfeições. E eu. E os outros. Todos amadores. Não vivemos o suficiente para sermos outra coisa, afirmou Charlot. A vida é aprendizagem . Cheia de factores que nos roubam, que nos limitam a capacidade de ver as coisas por si, em si. Que somos nós, então? Quase nada, pois falta-nos a humildade para reconhecer a nossa fragilidade. Quase tudo, porque mantemos a fé numa felicidade possível.
Umas horas diante do meu velho amigo mar. Que murmura que a vida ainda não acabou. Que é preciso dar tempo ao tempo. Reaprender a viver todos os dias. Ainda que cansados e cheios de dúvidas.

AMS