Num café
Vagueio ao sabor do pensamento por entre ruas
apinhadas de pessoas olhando, mas não vendo,
o chão fugaz que pisam. É como uma espécie de
ritual, uma peregrinação que termina, quase sempre,
numa mesa de um qualquer café desta cidade que
se chama Porto. Ao meu lado, alguém discute filosofia,
futebol, a urgência do amor no tempo, o tempo exacto do
amor... Vozes confundem-se. Gestos cruzam-se, perdem-se.
Mesas cheias. Mesas vazias. Almas desencontradas.
Pego numa folha de papel e mais uma vez me deixo
guiar pelo pensamento. Por vezes, a escrita dói.
Outras, é a maneira de libertar irreveláveis segredos.
Uma espécie de jogo, onde a tinta escorre, as palavras
acenam, deixam ficar um adeus e dão lugar a outras
palavras. De súbito, olho através da vidraça embaciada
do café. O pó e o tempo sujaram-na, mas descortino
um vulto familiar que passa, apressado, olhando,
distraidamente, para as mesas cheias. Para as mesas
vazias. Não vendo a minha mesa desencontrada.
Eis na minha mão o fio condutor das palavras.
Bastou a passagem indelével daquele perfil delineado
pela lembrança, para a folha de papel se encher
de uma invisível presença, de marcas que ficaram
para sempre humedecidas pelo fascínio do que nunca
chegou a ser, e até mesmo de um sorriso insondável,
seduzido pela percepção daquela sombra fugidia.
Assim nasce a mensagem indizível, nostálgica,
que teima em vaguear pela mesa de um qualquer café
de uma qualquer rua, onde o tédio é interrompido
pela vaga recordação de um qualquer vulto familiar.
Há dias assim...
AMS