sábado, outubro 14, 2006

A pastilha elástica

Estava desesperada. De-ses-pe-ra-da! Que fazer? Tinha quarenta - não seriam quarenta e três?! - bons motivos para não escrever aquilo que lhe ia na alma. Sabia que viria a arrepender-se mil vezes. Mil e uma… para ser mais precisa. Contudo, depois do curso acelerado sobre auto-estima - três, quatro aulas foram o suficiente, já que o guru era um tónico fresco de sinceridade e não o costumado trapaceiro de meia-tijela - sentia-se com forças para levar em frente a sua decisão.
Pegou na folha, no lápis e na tal firme decisão. Hesitou - também só tinham sido quatro aulitas sobre auto-estima - atirou o lápis para a gaveta e trocou-o por uma caneta de marca. Acima de tudo, manter sempre uma postura digna e superior como a do Paulo Portas. Lápis tinha a ver com mercearia, contas por saldar, comida enlatada… Não! Requinte e distinção nos mínimos pormenores.
Que dizer? Que escrever? Se ao menos o curso acelerado tivesse incluído umas leves noções de poesia, sempre poderia atenuar aquele momento com uma bela rima…. Assim… era bem mais difícil. As ideias resvalavam, mas não colavam.
Odiava-se, naquele momento, por não fumar. Pousou a caneta, remexeu na gaveta e lá encontrou a pastilha elástica - vulgo chiclete! Tirou-lhe, docemente, o papel, meteu-a na boca, saboreando o gosto a morango açucarado da goma. Lera, não sabia onde, que mascar chiclete tinha efeitos positivos sobre o processo do pensamento e da memória. Aguardaria, pois, uns minutos. No entretanto, ia pensando que, depois de resolvido aquele assunto, iria inscrever-se numas aulas de kung-fu. Seria uma espécie de Conan, o bárbaro, mas sem perder a feminilidade... Diabo. O efeito chewing-gum demorava. Que chatice. E se em vez de kung-fu optasse por umas aulas de jiu-jitsu? Depois decidiria… o importante era entrar no jogo. Ser espirituosa. Nada de copiar aquelas flausinas que, mal lhes atiram com um vilancete, desmaiam de comoção e… cai o pano. Irra! A pastilha elástica começava a ter efeitos dopantes. A cabeça dela parecia um puzzle voador. Show de bola, como dizia o outro. Show de bola!
Pegou, novamente, na folha e na caneta. Apeteceu-lhe - efeito do maldito chiclete? - desenhar um escaravelho e uma barata. Colocar umas penas no primeiro e umas extensões - tipo Bo Derek - na segunda. Logo ela que não tinha jeito nenhum para o desenho e detestava aquele tipo de insectos... Estava feita…os cientistas tinham razão: a maldita pastilha elástica tinha o efeito de um torpedo voador.
Respirou fundo. Deixemo-nos de histórias – pensou. O que tem de ser... será… ou não. Estas debilidades eram a prova de que a sua auto-estima ainda não estava a cem por cento. Devia ter marcado mais umas aulitas…
Começou a escrever. Caligrafia redonda, cintilante, desenhada, primorosamente, com todo o carinho e gratidão que lhe iam na alma.


Caro Felisbelo,


Vamos pôr os pontos nos iiiiiiiiiiiii! É com todo o meu afecto e infinita gratidão que te digo que me fartei do papel de otária! De tanto assumir, perante ti, que era burra… quase acreditei. Gostaria, se isso não te causasse grande transtorno, que fosses dar uma volta ao bilhar grande. O nosso taco a taco tem estado em desvantagem. Eu jogo sozinha. Tu fazes-te acompanhar de claque. E isso, caro Felisbelo do meu coração, além de ser politicamente incorrecto, desleal, é motivo para alguém se lembrar de fazer queixa na DECO... e com pedido de indemnização.
Assim sendo, despeço-me, não sem antes te pedir para levares o gato contigo. Isso de chamar Snoopy a um gato é a prova irrefutável de que nunca seríamos almas gémeas – muito menos siamesas. Eu queria que ele se chamasse Pokémon, recordas? Ainda sugeri, como alternativa, Reverendo Bonifácio, em honra a um antepassado, mas tu mantiveste-te irredutível e ditador... como sempre. Snoopy! Foi a gota de água... Desculpa, mas nunca gostei de mutantes e esse nome num gato era prenúncio de fobias terríveis e de um futuro pouco auspicioso.


Recebe, desta tua Felismina, montes, montanhas de:


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Levantou-se. Suspirou. Pegou num envelope, meteu a folha lá dentro e lacrou-a, nostálgica, com a pastilha elástica.

AMS

Nota: este “texto” foi escrito depois de ter assistido à peça de Ionesco - Le roi se meurt.
Qualquer influência mais ou menos surrealista é pura coincidência. Ou não?!