terça-feira, outubro 10, 2006

Estavas aí?!

Olhou-o. Ele não retribuiu o olhar. Há muito que o seu olhar deixara de prender o dele. De o cativar. O silêncio que se instalara na sala - há tanto tempo… - tinha o efeito de uma faca cortante. Ela continuou a observá-lo, tentando motivar um foco de atenção. Porém, faltava algo. Era como se já não o conhecesse. E, no entanto, naquele momento, naquela sala, estavam encerradas duas vidas. Apenas já não se cruzavam. Já nada tinham a ver uma com a outra. Era como se uma porta se tivesse aberto e um vento fortíssimo as tivesse separado irremediavelmente. Não é possível mudar o destino, sobretudo... quando não se quer. Não se vivem histórias. São as histórias que nos possuem e não nos é dado escolher finais. Pelo menos, ela não escolhera aquele. Nem ele, talvez. Tinham tido algo que lhes pertencera, pelo qual lutaram e que, sem saberem como, tinham perdido.
O sedimento amargo da memória não a largava, não lhe dava paz, e enquanto continuava a fitá-lo, demorada e insistentemente, olhava também para dentro dela. O que lhes escapara? A sua relação, outrora tão sólida, era, presentemente, mais fina do que um cordel. Nada em comum. Nem amigos. Nem projectos de vida. Nem sonhos. Sem presente e muito menos futuro.
Ele continuava tão obcecado a ver o jogo - fingindo? - que não notara ainda o olhar colado ao seu rosto. E, segundo dizem, um olhar demasiado insistente costuma incomodar. Nem isso parecia perturbá-lo…
Quando entrara na sala, levava uma réstia de esperança. Ainda imaginou - como as mulheres são sonhadoras, tontas… - ouvir dizer:
- Senta-te aqui. Aqui, perto de mim… Conta-me como foi o teu dia…
Num tempo de cumplicidade e partilha, ele gostava de a ouvir falar. Ela falava, ele sorria. Achava piada ao tom levemente jocoso, gaiato, com que ela descrevia pequenos relatos do quotidiano. Mas isso era no tempo em que o amor aquecia as suas vidas. O tempo não perdoa. O que não se usa, a mente apaga da memória e do coração.
Ela não entendia. Ele nada dizia. O silêncio, contudo, ecoava, estridentemente, o vazio, os deslaços, o frio cortante que os petrificava. Antigamente - como ela detesta essa palavra - falavam de tudo. Sabiam ouvir o silêncio. Sabiam apreciá-lo. E eram felizes. O que mudara? Ela não sabia. Ou sabia e tentava ignorar.
De repente, ele olha para ela. Por uma fracção de segundos, ela julga viver a antiga magia, o antigo amor. Farrapos do antigo amor. O olhar dele desvia-se, foge. Concentra-se, de novo, no jogo. Uma voz seca, apática, corta o silêncio :
- Estavas aí? Nem te senti entrar…

AMS