espelho meu, espelho meu...
Olhei-o de frente e fiz-lhe a pergunta: - " Espelho meu, espelho meu, há, no mundo, alguma mulher mais bela do que eu?"Pareceu-me que, por instantes, a luz lhe fugia. Pareceu-me ver uma sombra escapando-se por entre os reflexos do fundo. Era ele, o desgraçado, tentando abafar o riso. Então, corrigi a pergunta: - " Espelho meu, espelho meu, há, nesta rua, alguma mulher mais bela do que eu? ".
Maldito! Continuou calado. Ou seria surdo? Resolvi tentar de novo: - " Espelho meu, espelho meu, há, neste prédio, alguma mulher mais bela do que eu?" Perante a sua indisfarçada petulância, perante o seu mutismo, antes que o sorriso irónico aparecesse, antes de lhe atirar com um frasco de perfume que o desfizesse em mil espelhinhos, resolvi balbuciar, timidamente: - " Não, não há. Eu sei que não há..."
E, no entanto, eis-me aqui, belo exemplar da complexidade feminina, a travar um surdo diálogo com um... espelho.
Não, ingrato espelho, não estou a pôr em causa o teu bom gosto, imbecil. Ponho, sobretudo, em causa o que já conquistei - ou não - e, até mesmo, o que ainda pretendo alcançar na vida. Ah, sim, não dispenso esta sessão de masoquismo. Nem desejo que pessoa alguma venha criticar as minhas dúvidas existenciais.
Como o ser humano é complicado. Nós, mulheres, nem se fala... Não desistimos de mudar o mundo, de mudar o outro, de nos mudarmos, até que o mundo, o outro ... correspondam ao nosso ideal, que, paradoxalmente, sabemos não existir.
Isto da vida deixa não deixa de ser um bilhete da sorte grande! Quando pensamos que encontramos a porta do paraíso, reparamos que é só uma porta que nem se pode abrir de tão enferrujada que está.!
Descobri muito cedo que o Pai Natal é uma farsa, mas sempre tive a certezinha de que era a Cinderela. A versão recente e moderna da gata borralheira. Porém, os sapos encantados estão em vias de extinção, isto já para não falar dos princípes. Os poucos que há, estão sob as garras de alguma bruxa - má para nós, boa para eles.
Mas, enquanto finjo que não espero, vou sonhando.
Aposto uma parte - coisa pouca - do meu ordenado em cremes hidratantes, found de teint, cremes anti-celulite, cubro as minhas unhas de esmalte fortificante, claro, para as proteger do efeito devastador do Fairy. Faço ginástica três vezes por semana - quando a preguiça não se apodera de mim ou quando não me dá para praticar corrida lenta a ver montras - para manter a rígidez muscular. Sim, porque o meu bom senso - também não posso ter tudo mau... - recusa-se a aderir à moda do cem por cento sintético. Não como os chocolates que amigas de peniche me oferecem - dizem as revistas que não posso engordar e lá vou falando - raramente passo da conjugação deste verbo - em dietas e regimes espartanos. Sempre detestei a Inquisição, torturas, cenas de terror, e a visão do meu corpo transformado numa esbelta ninfa... esfomeada e em estado quase letárgico, não me atrai muito.
E tem mais - sou mãe! Uma mãe atenta, mas demasiado ocupada com os problemas domésticos, as compras, a profissão...
Porém, não sou de ferro. E tenho, por vezes, estas debilidades. Como a de hoje... perante o espelho.
Porra, déspota pedaço de vidro, custava-te dizer: - " Não, não existe. Tu és a mulher mais bela do mundo, a mais perfeita, a mais culta, a mais sensível... a mais idiota?!"
Idiota, sim. O tempo das princesas já era. E o dos princípes... já foi.
Deixo de olhar para o espelho e observo, atentamente, o Inácio. Qual Inácio? O peixinho vermelho que tenho no meu quarto, suas mentes poluídas. Não tem possibilidade de fugir: roda e roda, noite e dia. Come, quando lhe dão de comer, e, entretanto, roda. Isto é a morte, sem o grande sossego da morte. Às vezes, sinto-me assim. Olho-me ao espelho e vejo uma mulher presa entre paredes de vidro. Não tenho possibilidades de fuga. Rodo. Quem disse que circular é viver?!
Quem foi o néscio que inventou o espelho? Narciso, claro. E teve um rico fim...
Sinto-me um disco riscado ou um CD estragado. Neste reino, que se activa por magia e em circunstâncias que não sabemos bem definir, a nostalgia pega fogo e ateia a tristeza. E esta destrói tudo. Destrói as expectativas, rodeia de sombras as certezas e faz-nos ver tudo negro. É nestas alturas que temos uma pena imensa de nós mesmas, sentindo um vazio infinito cá dentro que nada - bolas, há por aí algum perito em Freud? - nada mesmo parece poder preencher.
Volto a olhar, desafiadoramente, o espelho. Estás feito, podes crer, se não respondes o que deves. E, saboreando, antecipadamente, a morte daquele repugnante Judas, pergunto: - " Espelho meu, espe... "
" - Mãeeeee, viste a minha mochila?" - grita uma voz estridente, juvenil, impaciente.
Olho, decidida, o inimigo. Ele olha-me com impertinente altivez. Desafio. Luta de titãs.
De repente, alguém entra, qual turbilhão, no quarto, e diz: - " Mãeeeeee, viste a minha mochila? Mãe, que tens? Sentes-te mal?Que fazes, tipo esfinge, em frente ao espelho? Estás linda. És a mãe mais bonita do mundo. Viste a minha mochila? Despacha-te!" . E o turbilhão sai tão rápido como entrara. Esquisito, dá a impressão que o espelho empalideceu, diminuiu, perdeu poder. O rosto que reflecte apresenta-se confiante, feliz, radioso.
Espelho meu, espelho meu, sou a mãe mais bonita do mundo!
AMS