terça-feira, outubro 10, 2006

carta a um irmão

Já passaram quatro Natais. Não houve um único em que não me lembrasse de ti. És o mais novo. Por tradição o mais mimado, o mais protegido. Eu acrescento - embora corra o risco de ser mal interpretada - o mais frio, o mais pragmático, o mais descalço de emoções.
Quando nasceste, era eu ainda uma miúda, mas, por instinto nato nas mulheres, assumi, de imediato, o papel de uma segunda mãe. À medida que crescias, levava-te comigo para todo o lado. Eras uma espécie de "embrulho" que eu transportava com carinho e desvelo.
Fomos acompanhando o fluir do tempo. As diferenças de temperamentos começavam a alastrar como uma mancha poluente que vai destruindo tudo à sua passagem. Aprendeste a acusar-me de ser uma sonhadora, uma inadaptada - era essa a palavra, não? - esquecendo, ou ignorando que o sonho nos ajuda a adormecer sobre o nosso desassossego e que o homem quando sonha é rei. Distanciavas-te cada vez mais de nós, de mim, sobretudo. És ainda jovem, mas já pareces tão "velho", tão cinicamente céptico, tão desabrigado de laços… Como pudeste esquecer retalhos tão intensamente vividos, tão maravilhosamente partilhados na nossa infância e adolescência? Eu ainda os recordo. Claro, eu sou uma sonhadora e as pessoas como eu têm sempre o "sotão" cheio de memórias. Como pudeste esquecer as nossas traquinices - que acabavam, quase sempre, em reprimendas sobre mim - a nossa cumplicidade quando subíamos ao terraço e íamos ver as estrelas?! Quero dizer: eu ia ver as estrelas. Tu, creio, já nessa altura gostavas de sentir a vertigem das alturas e, de certa maneira, uma subtil sensação de poder. Também já nessa época tinhas a mania de coleccionar pedras. Todos achavam imensa graça e era ponto ajustado que serias arqueólogo. Será que isso influenciou a natureza do teu coração? Desculpa. Não pretendo ser irónica, apenas tento compreender... Só que, também já nesse tempo, começávamos a desenhar rumos completamente distintos. Tu querias encontrar pedras raras, preciosas, descobrir tesouros enterrados na profundeza da terra. Eu olhava o firmamento e sonhava agarrar estrelas.
Acabaste por concretizar o teu sonho – geologia. Sei que és um bom profissional. Terminaste o mestrado e a meta seguinte é o doutoramento. Tens fama de ambicioso o que , nos tempos que correm, dizem ser uma grande virtude, um degrau mais perto do sucesso. É um dado adquirido que as nossas bússolas apontavam diferentes direcções. A tua caminhada tem sido sempre a direito, sem desvios nem recuos, milimetricamente exacta. A minha travessia tem sido, às vezes, um pouco às cegas, cheia de quedas, de atalhos... Menos monótona do que a tua, pelo menos. Caminhas sem olhar a "paisagem", sem reparar em quem vais deixando para trás. Para trás fui ficando eu... E isso custa muito a aceitar. Creio que nunca se aceita. E magoa, porque pisa o coração.
Coleccionavas pedras, procuravas diamantes. Eu tentava agarrar estrelas. Era razão para me condenares ao "exílio"? É razão para apagares a ternura de um tempo inscrito na memória melancólica das coisas que passaram, mas persistem, com o álibi de que tudo acaba por se desvanecer lentamente ? É razão para um distanciamento tão duro como cristal afiado?
O que eu desejava realmente - não, fica descansado, pois já compreendi que as estrelas não estão ao meu alcance - era o dom de poder viajar no tempo e, assim, poder recuperar aquele outro mundo perdido, onde, puros de ambições e poder, sentíamos - mais do que sabíamos - que no território mágico dos afectos ninguém consegue entrar de coração vazio. Um tempo em que éramos naturalmente felizes e os sentimentos não necessitavam de protocolos prévios.
Todas esta retórica, afinal, para quê? Simplesmente porque, apesar da lógica tão precária do ser humano, continuo a gostar muito de ti, e porque sei que, neste Natal - como nos anteriores - tudo será, seraficamente, igual. Continuarei a tentar chegar ao teu coração, sabendo que nunca lá chegarei. Como nunca consegui chegar às minhas estrelas.

AMS