Quem sabe?!
Em tom solene - como a ocasião requeria - anunciaste que partias. Foste fleumático, quase paternal nas pueris justificações que eu não pedi, mas que tu decidiste doar-me: - "O amor não se submete a distâncias; não termina porque deixamos de ver a pessoa que amamos; pelo contrário, às vezes, a distância coloca as coisas nos seus devidos lugares, convida-nos a reflectir e, sobretudo, ajuda-nos a compreender, a darmo-nos conta de que é melhor cansarmo-nos juntos do que viver separados".E partiste. Tranquilo. Sem compromissos. Levando as malas vazias do amor que deixaste desamparado em mim e, simultaneamente, cheias de um enorme egoísmo. Egoísmo, sim. É certo que o amor não pode ser dado como uma esmola. Seria uma humilhação para quem o recebesse. Mas não creio que fosse esse o caso. Digamos que as explicações se poderiam resumir a duas palavras - medo, cobardia. Fugiste, acima de tudo, porque não ousaste enfrentar o desgaste do tempo, a rotina do dia-a-dia exigindo mil estratégias para a abafar. Fugiste com medo do desencanto, do desamor. E sem reparar que, dificilmente, seria impossível ressuscitar o que levaste contigo nas duas malas que te acompanharam. Suponho que, como todos os homens - e não é uma acusação, apenas mera constatação - penses, se ainda me é dado que te recordes de mim, que a lembrança da tua presença permanecerá, eternamente, associada aos livros que deixaste esquecidos, às fotos que eu já guardei, ao sofá onde costumavas sentar-te... enfim, que a tua presença - agora ausência - ficará para todo o sempre guardada na memória das coisas e na minha.
Porém, diz-me a experiência de noites não dormidas, sorrisos envergonhados de faz-de-conta, que nem sequer as recordações são eternas. A nossa mente tem essa incrível capacidade de guardar apenas o fundamental e deitar fora o acessório.
Partiste. Com um certo savoir-faire - como tu exiges da vida e das pessoas. A palavra adequada será... civilizadamente - não é o teu lema? Sem dramas. Sem lágrimas. Sem remorsos. Sem olhar para trás.
Eu fiquei. Interessante esta história das partidas: há sempre alguém que vai; há sempre alguém que fica. Coube-me a mim ficar. Menos civilizadamente, é certo. Mais sofrida. Tentando, de certa forma, agarrar, ainda, o centro de mim mesma - tu! De vez em quando, acerco-me da janela, parecendo-me vislumbrar um vulto, na rua, com as mesmas malas que levaste quando partiste. Malas feitas de despedida. Malas feitas de nada como o nada que me deixaste.
Quem sabe, talvez, um dia, estando, ansiosa e feliz, a olhar através da janela, esperando um outro alguém, veja um vulto, longinquamente conhecido, aproximar-se da porta já cerrada... com duas malas carregadas de explicações, desculpas e de afectos... tardios. Já inúteis. Quem sabe?!
AMS