Saiba Vossa Excelência...
Aquilo que vou narrar-lhes não pertence ao domínio da ficção. Aconteceu realmente, deixando-me uma lembrança sorridente e comovida desses tempos. O "episódio" decorreu numa antiga e conhecida escola secundária do Porto - labiríntica , um pouco sombria, desgastada pelo tempo - o que é normal no nosso país, onde a expressão “a precisar de obras” é adiada sine die - e onde eu leccionava literatura a turmas do ensino recorrente secundário nocturno. O meu "público" era, habitualmente, constituído por pessoas na faixa etária dos 20 aos 50 e, em casos pontuais, até mais. Pessoas maravilhosas, empenhadas, gratas, a quem tive a honra de poder transmitir algum conhecimento e que, em troca, me presentearam com enciclopédias e enciclopédias de vivências extraordinárias e únicas.No primeiro ano em que entrei para a referida escola, vi-me a deambular por corredores e mais corredores, pavilhões, blocos, “catacumbas” - era assim que chamavam à parte correspondente à cave. Daí o poderem imaginar como o meu passeio estava a ser agradável... procurando a sala onde estaria a turma "x" - será melhor apelidá-la deste modo, não vá algum dos leitores ter feito parte da mesma. Ei-la, finalmente! Entrei, sorri e... parei petrificada. Acreditem que ainda hoje sorrio ao imaginar a minha cara perante aquela plateia tão... especial! Grande parte dos alunos eram freiras - as chamadas irmãs - e aquele leque vastíssimo de véus quase me levou, compulsivamente, a benzer-me e rezar um pai-nosso ou uma avé-maria. De surpresa em surpresa, de espanto em espanto - e ainda mal refeita do espectáculo daquela hoste cristã - vejo surgir um venerável, mas rijo, ancião - qual velho do Restelo, mas sem barbas. Mais tarde, soube que tinha cerca de oitenta anos, fazendo já parte do mobiliário da escola - que, diringindo-se a mim, pareceu dizer (reparem no pormenor do "pareceu") - "Vossa Excelência... ". Instintivamente, olhei para trás, pensando que algum elemento do Conselho Executivo tinha entrado sem eu dar por tal. Não. E agora ouvia nitidamente - "Vossa Excelência importa-se de confirmar se o meu nome faz parte da lista desta turma?". Habituada a outros tratamentos, a minha cara devia ser o reflexo da minha perplexidade. Não bastava o "convento", ainda tinha um aluno que me tratava como se eu fosse a madre-abadessa!
As semanas e os meses passaram. Os véus também passaram a ser décor indispensável, e o meu venerável aluno um verdadeiro bico-de-obra. Porquê? - perguntarão. Tratava-se de uma pessoa muito culta, com uma memória prodigiosa para datas. Sabia as datas de nascimento e morte de todos os escritores e dos seus familiares mais próximos. Não contente com isto, sabia o local onde estavam enterrados, a alameda e até o número da campa. Luta inglória a minha com semelhante adversário. Rendi-me. O mais engraçado é que ele comentava as efemérides sempre deste jeito - "Saiba Vossa Excelência que ele morreu com cirrose, no hospital "y", está enterrado no cemitério "w", na campa número... Aconselho-a a ir visitar. É um belo passeio!". A cena mais hilariante foi quando, estando eu a dar Pessoa e os heterónimos, falei nas cartas de amor do grande poeta. A certa altura, uma das irmãs perguntou - " Ele era casado?" Como pude, e para não entrar em pormenores que chocassem aquelas cândidas almas, comecei a explicar que só se lhe conhecia uma namorada, que... De súbito, o meu arguto e conhecedor aluno interrompe as minhas lérias e sai-se com estas peculiares e directas palavras - "Saiba Vossa Excelência que Fernando Pessoa era sexualmente impotente!".
AMS
Nota: Um abraço de muita saudade ao "pessoal" do recorrente nocturno da escola "descrita".