domingo, outubro 15, 2006

Um Romeu nos saldos

Sou defensora militante da teoria de que a tisana milagrosa, a anestesia alternativa a sessões de ioga, filosofia tibetana, tarot e outras experiências similares que atenuem ou pretendam fazer esquecer os nossos - das mulheres, pois então - desgostos, melancolias, depressões, fobias, ansiedades e outros males afins, passa por uma tarde cujo ponto único se resume a comprar umas "coisitas". Uma espécie de paraíso - fórmula mágica? - para neuróticas, ultra-sensíveis, enfim, mulheres à beira de uma crise de nervos, topam?
Há lá coisa mais relaxante do que ver montras, entar nas mais variadíssimas lojas, experimentar, não hesitar e comprar... sabe-se lá o quê... Aliás, é quase irrelevante o(s) artigo(s) que, no final da tarde, levamos, orgulhosamente, para casa. Desde uns sapatos que acabamos - sempre - por constatar serem apertados, um casaco que não condiz com nada, um peça de cerâmica que a nossa filha acaba - sempre - por reduzir ao elogio "pirosa"... tudo nos serve de troféu para aquecer dias cinzentos e um ego ainda mais sombrio.
Uma coisa é certa, um psiquiatra não faria tanto por nós. Sobe o ego - desce a conta bancária - não há necessidade de "Prozac" e o alívio da alma é imediato - o da bolsa também, mas isso é pura ninharia.
E os saldos? Quem inventou os saldos está, tenho a certeza, no céu. Nenhum guru, aposto, encontrou terapia mais radical contra estados de alma em que nada é seguro... nem a tristeza... nem o tédio.
E o fascínio de entrar num grande armazém onde a palavra "saldos"é uma espécie de ascensão rumo à felicidade? E os preços "reduzidos"? E a disputa feroz por uma peça que, só mais tarde, reconhecemos ser um "mono"? E o perigo de asfixia, os empurrões, os apertos? Ora, nada que uma estratégia bem delineada não supere, podem crer. Nada que não compense as "pechinchas" que nos piscam os olhos e às quais, mulher que se preze, não resiste... nem quer resistir.
A propósito de saldos, também não resisto a contar-lhes uma dessas sagas plenas de perigos, aventura e... imprevistos.
Como devem saber tão bem como eu, o único inconveniente destes périplos tem a ver com o pagamento. Chegar à caixa é uma penitência igual a uma ida a Fátima. As "bichas" mais curtas são mais compridas do que uma fila para um concerto dos Rolling Stones. O engraçado da questão é ver como as mulheres aguentam, seraficamente, enquanto os homens, assustadoramente pálidos, acabam por desistir, cambaleantes, como se tivessem sido submetidos à tortura das torturas.
Ora, numa dessas esperas, reparo, espantada e divertida, num rapaz bamboleando-se por entre a multidão e suscitando risos e comentários, sinais evidentes do civismo, progresso e modernidade de um povo. Bem, para falar verdade, a Wanda Stuart não daria tanto nas vistas. Um cabelo vermelho com nuances amarelas, calças mais roxas que o Senhor dos Passos, t-shirt colante, sem mangas e com um padrão tipo tigre da Malásia, tudo levava a que aquela "montra ambulante" fosse o alvo das estóicas mulheres que ali se encontravam. Confesso que, por segundos, pensei tratar-se de um funcionário da Zara a fazer publicidade aos artigos expostos. Mas, inesperada e surpreendentemente, reparo que o "manequim" se dirigia a mim. Não vinha só. Acompanhavam-no mil olhares curiosos que tentavam adivinhar a relação existente entre nós. Ruborizada, apertando, piamente, as compras contra o peito, aguardei, cheia de fé, que ele mudasse de direcção. Debalde. Sorridente, indiferente aos comentários suscitados, toca-me no braço e, num tom elevado e teatral - demasiado elevado - diz:
- Professora, não se lembra de mim?
Juro pela vossa saúde que não conseguia identificá-lo. Aquele cabelo avermelhado, aqueles gestos delicados (?) não me lembravam ninguém. Seria impossível, aliás, esquecer tão peculiar figura. Perante o meu "não", quase em sussuro, o meu amigo oculto resolve abrir-me a torneira das recordações. - Fui seu aluno na escola ..., não me reconhece? Até entrei na peça de teatro que fizemos, recorda-se? Era o "Romeu"!
Ah... o "Romeu", claro. Mas um pouco mudado - retorqui. Sim, sim... O "Romeu"...
Os risos aumentavam a uma velocidade recorde. Eu queria desaparecer a uma velocidade idêntica, mas, ao mesmo tempo, aquele diálogo parecia-me promissor, uma espécie de investimento a fundo perdido... seja lá o que isso for. De súbito, uma senhora - idade indefinida - que estava à minha frente na dita fila de espera, liberta este "piropo":
- Desculpe o reparo, mas o senhor também teria dado uma bonita Julieta!

AMS